Capítulo 3

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Eu acordei sem ar. À medida em que meu fôlego foi voltando, eu me dei conta de que não estava no Ginásio da minha antiga escola. Acho que nunca fiquei tão feliz por estar dentro de um avião na minha vida.

"Era só um pesadelo", eu repeti para mim mesma pela milésima vez, respirando fundo. "Mais um pesadelo", pensei em seguida, perguntando-me se algum dia eu me livraria deles.

O vídeo, no entanto, continuava sendo verdade e a tentativa de acabar com minha vida me rendeu apenas uma lavagem estomacal e uma viagem sem passagem de volta para a cidade do Recife. A lembrança das expressões dos meus pais me encarando quando eu acordei no quarto do hospital no dia seguinte era difícil de se esquecer.

— Você está bem? A senhora sentada ao meu lado perguntou, preocupada.

Eu confirmei com a cabeça — provavelmente de uma forma não muito convincente, pois ela continuou me olhando de um jeito estranho — e ajeitei os óculos, que estavam quase caindo do meu rosto.

— Falta muito? — Eu perguntei enquanto esticava meu corpo para espantar os resquícios de sono. Cada pedacinho de mim parecia estar reclamando pelo mal jeito com que eu havia dormido naquela desconfortável cadeira de avião.

— Nós já estamos sobrevoando Recife, querida. — Ela sorriu para mim.

— Ah.

Recifenses tinham um jeito engraçado de falar. Não que eu tivesse a forma mais normal de se falar também. Pelo contrário, por ter crescido com o sotaque da minha mãe, minha pronúncia era relativamente diferente da dos outros paulistas que eu conhecia. Ainda assim, eu havia tido pouco contato com outras pessoas do Nordeste ao longo da vida além da minha mãe e o choque de sotaques ainda me impressionava.

Por isso, no instante em que eu entrei naquele avião, a primeira coisa que notei foi que muitos dos passageiros pronunciavam o "s" quase como um "x" e tinham um jeitinho de suavizar a dureza das palavras colocando um som de "i" em tudo que era possível. Minha mãe já havia perdido boa parte desse jeito de falar por causa do tempo, o que era uma pena porque era um sotaque bem fofo.

— Você quer olhar? — Ela me perguntou, animada. — Pode ficar no meu lugar.

— Não precisa se preocupar!

— Oxe! — "Oxe" era mais uma expressão que eu havia escutado repetidas vezes desde que havia entrado no avião. — Não é incômodo não! Eu pego esse avião todo mês, menina!

Eu ainda tentei gesticular com as mãos quando percebi que ela estava se levantando para me ceder seu lugar ao lado da janela.

— Pule logo para cá antes que a aeromoça brigue comigo! — Ela sussurrou de uma forma conspiratória.

— Obrigada. — Eu agradeci, um tanto desconsertada com a gentileza inesperada daquela senhora desconhecida. Gentileza era uma coisa com a qual eu estava desacostumada nos últimos tempos.

Quando eu encostei a testa na janelinha oval, confesso que tomei um susto. Era literalmente — no uso correto da palavra! — a primeira vez que eu estava vendo Recife ao vivo. Nem mesmo quando meus pais comunicaram que me mandariam para cá para ficar na casa da minha tia Fátima eu havia tido a curiosidade de procurar por fotos da cidade.

— É linda, né? — A senhora disse depois de um tempo, com um quê de orgulho em sua voz.

— Sim. Impressionante. — Eu concordei.

Do alto dos sei lá quantos mil pés que estávamos, eu podia ver Recife em toda sua extensão. Eu não fazia ideia, mas a cidade era toda entrecortada por rios e pontes. Sem falar no mar azul fascinante. E havia tantos prédios! Eu me envergonhei instantaneamente pela minha falta de interesse em procurar saber mais sobre aquele lugar em que eu moraria pelos próximos cinco anos e meio.

Quando eu caí na netOnde histórias criam vida. Descubra agora