Sexta-feira crazy

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Overdose é um troço que faz um mal danado. Sei bem, pois sofri duma numa Sexta-feira Santa. Overdose de bacalhau. Sim, senhor, comi bacalhau sem dó, sem pudor, sem medo de ser feliz. Comi bacalhau até embaçar a vista, até, sei lá, ter visagens católicas ou até, quiçá, quase morrer. O que não seria problema, já que a ressurreição, prometem uns por aí, viria no domingo.


Para ter uma ideia do tamanho da bronca, alimentava-me durante o almoço sentado ao sofá – faltava espaço na mesa –, com o prato à mão, e, em dado momento, parei. Faltava-me ar. Talvez fosse a posição, levemente arqueado à frente. Talvez fossem os princípios ativos do sal, já fazendo efeito. Só sei que precisei parar o incessante mastigar, colocar uma almofada às costas e alinhar a coluna para conseguir empurrar goela abaixo a terceira pratada.


Contudo, preciso avisar àqueles que, porventura, venham um dia a consumir uma overdose de bacalhau que o danado age em dois momentos distintos. O primeiro, no ato da ogrice, da gulodice, da comilança desvairada é aquele cujos sintomas são: a alegria profunda do sabor atrelada à tristeza do arrependimento por não se controlar, uma vontade louca de se entregar aos braços de Morfeu e breves eructações entremeadas por curtos soluços. O segundo momento de ataque é aquele que me fez escrever este texto, aquele que traz as alucinações.


É evidente que após três pratadas de um sedutor bacalhau, com suas gordas azeitonas pretas, cebolas tenras, tomates e pimentões suculentos, batatas impregnadas do salgadinho, hummm, e litros e mais litros de azeite de oliva, você se sente como se um aríete lhe acertasse em cheio, derrubando-o na primeira superfície macia que lhe cruze à frente e... ronco. Capotei ingenuamente, tranquilamente, despreocupadamente, tal e qual um feinho adormecido a meramente descansar e aproveitar o prazeroso bode do abuso alimentar. E foi neste universo hipnótico, surreal, a área do sonho, terra capitaneada por Freddy Krueger, que a alucinação da overdose luso-pisciana chegou-me como se fosse a bruxa trazida pelos ventos nórdicos.


De repente, estava numa festa de criança. Uma festa de aniversário de criança. Só isso, mesmo em sonho, já soa estranho, dado que não sou muito fã de crianças. Era só a pré-festa, por assim dizer, cujo salão ainda se apresentava vazio. Nem criancinhas remelentas, nem pais fadigados, nem organizadores atabalhoados, nem nada. A única alma presente, ao fundo, era o DJ que animaria a festa. E o tal DJ, armando a parafernália sonora, era ninguém mais, ninguém menos, que Conan – o Bárbaro. Não, não me pergunte. E não era um maluco vestido de Conan. Não. Era o Conan, mesmo! Arnold Schwarzenegger em pessoa, travestido de Conan. Só que era um Schwarza novinho, bárbaro. Era CONAN.


Foi muito estranho.


Quando dei por mim, como se o intervalo publicitário entrasse no ar, num corte brusco de tomada, a festa já estava lotada. Era criança correndo pra lá, pra cá, garçons com bandejas de salgadinhos, coca-cola, e logo Conan não estava mais controlando o som. O show acabara e eu nem vi. Assim são os sonhos – ainda mais os alucinógenos à base de overdose de bacalhau. Mas o Arnold ainda estava por lá, participando do evento. Estava jovem, com o cabelo repartido ao meio, sobre as orelhas, mas curto – vai ver a vasta cabeleira do Conan era peruca –, vestindo calça branca e um blazer amarelo (aceite, delírio não se explica). Encontrava-se ele a um canto, conversando com um amigo – sei que era amigo porque o sonho era meu – e eu não sabia se devia ou não ir lá trocar uma ideia com o astro. Afinal, sabe como é, não podemos perder a oportunidade de tietar, mesmo que em imaginação.


Achei melhor ficar na minha, só observando e curtindo toda a alucinação. De certo modo, sem poder explicar, sabia que tudo aquilo era sonho; apesar de me achar maluco, no sonho, por pensar isso. Foi neste momento que meu amigo Thiago chegou à festa. Devíamos ser conhecidos em comum dos pais da criancinha aniversariante, vai saber. Thiago apareceu com uma camisa do Coritiba Foot Ball Club embaixo do braço, parou a meu lado e perguntou:

– Viu quem tá ali? É o Schwarzenegger.

– Vi sim. Já faz um tempo que tá por aqui, mas agora tá de folga, ele foi o Dj Conan na festa.

– Putz, e eu perdi essa?

– Perdeu, e eu também, pois o show foi durante um corte de câmera, duma cena para outra, no meio do sonho.

– Ah!

– Tava aqui pensando se deveria ir lá, dar um oi.

– Sim, seria legal. Eu queria muito que ele autografasse a minha camisa do Coxa.

– Por que quer que ele autografe a sua camisa do Coxa?

– Ora, é o Schwarzenegger, precisa de outro motivo?

– Tem razão.

– Você vai lá pedir por mim?

– Pedir o quê?

– Que ele autografe a minha camisa.

– Eu?! Tá maluco? Vai você.

– Tô meio envergonhado. Além disso, não falo alemão.

– E eu falo, decerto? Vai lá você. Ele fala inglês também, foi até governador da Califórnia.

– Não dá. Além do meu inglês não ser lá essa coisas, como é que eu vou encarar Conan, o Bárbaro Governador da Califórnia, assim, na cara dura?

– Exatamente! E você ainda quer que eu vá no seu lugar.

– Ora, mas veja bem, ao menos o sonho é seu. Creio que ele será mais amistoso com você.

– Pode ser. Dá aqui essa camisa.


Não deu tempo. Foi aí que eu acordei, meio grogue, com o corpo dolorido e com bafo de bacalhau assado com cebola. Levantei-me e cambaleei pelo corredor, zonzo, tentando entender o que havia acabado de ocorrer. Na sala, encontrei minha namorada e logo disse "Tive um sonho muito louco agora" e o descrevi. Ela me olhou preocupada, mas solidária – com aquele ar de quem compreende bem os momentos pós-overdose alimentícia – e disse: "Calma, foi só um sonho. Vai ficar tudo bem agora. Só, por favor, tenha senso do ridículo e não faça disso uma crônica".

O riso, o raso e a rezaOnde histórias criam vida. Descubra agora