Eu perco o freio

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 Essa história reúne um CD da Adriana Calcanhoto, uma pampa (sim, o carro) e uma turminha do barulho agitando altas confusões. Vem comigo que você não vai (ou vai) se arrepender.

Em uma noite atípica de outono curitibano, eu e três amigos bebericávamos enquanto tocávamos uma viola, sem ter muito o que fazer. Entre amenidades e debates acalorados sobre a Pirâmide de Maslow e as famosas necessidades básicas, alguém solta "Por que não pegamos o carro qualquer dia desses e vamos para Joinville?". Ora, ora, ora... Estava plantada a sementinha do capiroto confabulador. Dali para "vamos! E vamos levar os instrumentos musicais, vamos a um bar, e beber, e dar risadas, e mulheres, e zás..." foi um pulo.

Corta a cena e estamos no carro, um Fiat Tipo, sexta-feira descendo a Serra do Mar rumo à Joinville. Por que lá? Ora, se você pergunta é porque não adiantará de nada eu te explicar. Dentro do automóvel – imagine agora você que jogará em breve uma partida de RPG e precisa escolher o seu personagem – estão o motorista-feiticeiro-saxofonista; o galã (não sou eu, evidentemente) paladino pseudo-percussionista; eu, agora sim, o bardo violeiro; e o quarto elemento guerreiro sem poderes musicais, mas que é de uma cara-de-pau ímpar, responsável à época pelas relações públicas do grupo.

No meio do caminho entre Curitiba e Joinville, estrada vazia e um breu – por volta de 20h, observamos à frente, uns 200 metros, a tal pampa. Não demos importância, pois estávamos nos divertindo tentando imaginar o que o fim de semana nos reservava entre barris de cerveja e cachos de uvas. Ouvíamos a última música do CD do Simoninha, Live Session At Trama Studios, uma versão pedrada de Bebete de Jorge Ben Jor. Terminada a saideira, falo da canção, e o RP pergunta o que gostaríamos de escutar na sequência. Palpita dali, daqui e ele se pronuncia sem dar chance a contrariar: "já sei, tem um bom aqui, vocês vão curtir". Ficamos ansiosos, afinal, ele falou com tamanha autoridade que deveria ser o sucessor do Thriller. Ele coloca na vitrola e dá o play. Então Adriana Calcanhoto entra em cena.

"Eu perco o chão

Eu não acho as palavras

Eu ando tão triste

Eu ando pela sala [...]"

Olha, nada contra a Adriana, mas... "Por que diabos você colocou esse CD em meio a uma viagem de loucuras rumo a um fim de semana, com um provável harém a nos esperar, lógico, alucinante repleto de aventuras e devaneios?". Perguntamos querendo pular para o banco da frente a estapeá-lo. Sádico, não tirou o CD e ria como se fosse a Rainha Má da Branca de Neve em frente ao espelho. Reclama-se, xinga-se e "troque esta merda", o piloto tentando se concentrar – "calem a boca" – curvas vindo, asfalto indo e, de repente, BUM!

Silêncio total entre nós. "O que foi isso?" e o motorista-saxofonista só diz: "olhem ali na frente". A pampa, agora a uns 100 metros adiante está literalmente pegando fogo. Não, não eram faíscas. Saíam pelas laterais do capô do bólido labaredas de quase um metro. A pampa sambava na pista, esquerda, direita, perdendo velocidade. Estávamos no meio da Serra, então, dum lado barranco abaixo, do outro barranco acima, sem acostamento. Dentro do nosso carro, o tempo está ao tempo do sonho, fluído. Ninguém consegue pensar no que fazer, apenas seguimos com os olhos aquele carro que vai se dirigindo à direita da estrada, cada vez mais perto de nós. Nessa hora, estamos ao seu lado. Ele em chamas, nós congelados. Os quatro olhando para o lado, bocas abertas e, no ritmo da incerteza e da incredulidade. A trilha sonora agora?

Eu perco o freio

Estou em milhares de cacos

Eu estou ao meio

O motorista da pampa achou uma estradinha de chão que saía da pista e jogou o carro para lá. Nós seguimos, olhando para trás, torcendo para que o homem saísse de dentro do inferno. Não havia como parar e voltar. Além de não ter acostamento, dois caminhões nos empurravam logo atrás. Eu fiquei tentando enxergar até o último instante se o homem saía pela porta e então o vi. Ele abre a porta e consegue sair, se afastando do carro, olhando estupefato.

Ou minha mente criou isso para eu me perdoar. Pode ser também.

Desligamos a Adriana e seguimos alguns quilómetros em silêncio, chocados. Pego o celular e tento ligar. Sem sinal. Quando consigo, aviso a Polícia Rodoviária e a concessionária da rodovia. Até hoje não posso ouvir a senhora Calcanhoto.

Todavia a viagem não tinha terminado e seguimos até Joinville. Em algum tempo, o susto se foi e voltamos a sonhar com os dias de luxúria que viveríamos.

Logo na entrada da cidade, uma rotatória nos aguardava e nela uma blitz da Polícia Militar. "ACENDE A LUZ" grita o RP, carioca de nascimento, enquanto mete a mão no interruptor no teto.

– Tá maluco, quer me matar de susto? – Questiona o galã pseudo-percussionista.

– No Rio é assim, viu blitz acende a luz.

Todos tentam se acalmar enquanto o Tipo vai parando em meio à blitz. Seu guarda pede documento e pergunta aonde estamos indo.

– Estamos indo para o desconhecido à procura de um bacanal, oficial. – Não direi quem respondeu jamais.

Seu guarda olhou firme, consultou o documento do motorista mais uma vez. Eu lá, suando frio em com aquela cara de emoji com boca entreaberta e dentes cerrados.

Ele entrega os documentos e manda a clássica "Circulando... Circulando!".

"Obrigado e boa noite!", ligamos o carro e saímos de lá. O homem ao volante entra na rotatória novamente e segue. Então, a entrada da cidade passa ao nosso lado e ele segue na rotatória.

– O que, raios, você tá fazendo? – Eu pergunto.

– Ih, perdi a entrada... – Responde o saxofonista sem GPS de rotatória.

E então, sim, caímos novamente na blitz.

– Vocês estão zoando com a minha cara!? – O policial estava realmente puto.

– Não, veja bem, é que, então, eu perdi... puxa... foi mal.

Era questão de tempo, seríamos presos. O guarda faz um sinal para o seu parceiro de trabalho e este já coloca a mão na cintura, próximo à pistola. Eu tento pensar em algo para dizer, mas realmente não tenho argumentos para "Circulando... Circulando!" e numa pirueta cair na mesma blitz 30 segundos depois.

Então, num movimento rápido, o motorista saca seu sax debaixo do banco e toca um Fá sustenido. O guarda se assusta por um segundo, mas não reage. Olha intrigado, um quê relutante ainda, mas o piloto prossegue à la Kenny G suingado. O galã tamborila uma percussão improvisada e eu então sinto que é a deixa. Ataco as acordas e emendo "Bebete, vambora". Seu guarda sem pestanejar completa "pois já está na hora" e o RP finaliza com "quem não chora não mama".

"Circulando duma vez por todas... Circulando!" E a música – Ben Jor, não Calcanhoto, óbvio – nos salvou mais uma vez. Foi por pouco.

Acertamos dessa vez a entrada e seguimos para o nosso fim de semana, cujas histórias ficam para o próximo livro.  

O riso, o raso e a rezaOnde histórias criam vida. Descubra agora