Sleep no more

1 0 0
                                    

Em Nova York, fui a essa peça de teatro – é até difícil dizer que é uma peça ou que é um teatro – chamada Sleep no More. Na verdade, é uma experiência quase transcendental. Nada na fachada te diz que ali há um espetáculo por acontecer. É off Broadway, como eles dizem. Um prédio antigo, The McKittrick Hotel, em Chelsea, que por trás da casca de tijolinhos à vista, cinco andares e térreo, guarda um mundo surreal e imersivo. Só se percebe que se está no local certo pela fila na calçada, dos que esperam para entrar, e pela pequena placa à porta, 30x20cm, com o nome do hotel.

Ao entrar, você faz o "check-in" na recepção e ganha uma carta de baralho. A minha: Ás de espadas. A recepcionista, vestida à moda anos 1930, indica o caminho e diz "good luck". Eu não sabia absolutamente nada sobre o que me aguardava. Fui por indicação e a pessoa não me contou nenhum detalhe. Ao passar pela porta, vi-me em um bar de jazz na Nova York do início do século passado. Homens de fraque, mulheres com cigarrilhas, dry-martines à mão e penteados curtos. O bar enchia e os atores se misturavam naturalmente, curiosamente, aos espectadores.

Em dado momento, o mestre de cerimônia, por assim chamar, toma o microfone vintage em mãos, dá boas-vindas a todos e solicita que as pessoas que estejam de posse das cartas de espada se dirijam ao elevador. Lá fui eu em direção a um elevador desses de carga, enorme, com capacidade para cerca de 20 pessoas. Ao entrar, o mestre de cerimônias passa algumas instruções: "sigam o caminho que desejarem, não toquem ou interajam por decisão própria com as personagens, não falem mais até o final da peça e coloquem a máscara e não a tirem em hipótese alguma".

A máscara que nos fora dada era sinistra. Simulava uma caveira, vinda da testa, recortada aos olhos, mas que, ao chegar à altura do nariz, se abre à frente como uma espécie de bico de pato na descendente. Isso deixava livre boca e nariz, sem causar possível sensação de falta de ar, mas os encobrindo pela angulação do "bico".

Quando colocamos a máscara, as 20 pessoas dentro do elevador, todos se olhavam curiosos. Um momento indescritível, pois é como se o fato de se ver por através daquela máscara, todos com as mesmas feições sinistras, nos tivesse feito entrar em outra dimensão, outra realidade. Então, o elevador parou e o mestre de cerimônia pediu para que eu abrisse a porta. Como fui o último a entrar, fiquei à porta na hora de sair. Abri-a e, quando coloquei o pé para fora, ela se fechou atrás de mim. Todos ficaram dentro do elevador, somente eu saí. Encontrei-me em um corredor em 'L', sozinho, no escuro. Percebia uma fraca luz vinda do corredor, que quebrava à direita. Pensei "bom, vamos lá" e segui o caminho da parca luz. Ao virar a esquina, estanquei. O corredor seguia reto a partir dali por uns 20 metros e essa luz era de uma única lâmpada de filetes amarelados localizada bem no meio do caminho. Embaixo dela, uma bela mulher, cachos de Marilyn Monroe, estava sentada em uma cadeira de balanço, oscilando para frente e para trás levemente. Ela não disse nada, tampouco se movimentou ao me ver. Se é que havia me visto. Continuava lá, se balançando.

Não existia outro caminho a seguir. Segui lentamente em sua direção. Apesar de saber tratar-se de uma peça, é sempre assim que começam os filmes de terror, com um espectador inocente achando que está vivenciando uma fantasia, mas que, quando percebe, o sangue que jorra é de verdade. Quando cheguei perto, havia um pequeno espaço entre ela e a parede. Calculei e dei conta de que eu, andando de lado, conseguiria passar. A mulher num movimento rápido se levantou e se jogou em minha direção. Colou as mãos nos meus ombros e me empurrou contra a parede. Fiquei congelado. Ela chegou a meu ouvido e sussurrou algo. Não compreendi. Pior que morrer é morrer sem saber o porquê. Ao menos nos filmes com legenda a gente entende o vilão quando ele entrega todo o plano antes da reviravolta do mocinho.

Ao terminar de falar em meu ouvido esquerdo, ela se movimentou calmamente ao direito. Não fosse pela máscara, e pela lógica, achei que ela teria me beijado naquela hora. Cochichou mais alguma coisa no direito. Eu esbocei um "hummm", como se estivesse com o fôlego represado, parte desejo do beijo, outra parte vontade de falar, mas impossibilitado pelas regras e pela completa desestruturação que a situação te coloca. Acho, não me recordo, que disse no final um "ok". Foi quando ela me puxou e me fez sentar na cadeira. Passou em pé para trás de mim, "agora ela me degola", e acionou um mecanismo que a inclinou tal e qual a uma cadeira de barbeiro. Fiquei completamente deitado, "agora não tem jeito, ela me ataca". A mulher começou a puxar a cadeira na direção do fim do túnel e percebi que estava sobre rodinhas. Enquanto seguíamos esse caminho, eu só via o teto, que logo começou a se iluminar por "relâmpagos" e "trovões" e a mostrar nele uma maquete. Ela ia narrando algo durante o trajeto e a maquete se iluminava conforme a história por ela era contada. A tragédia moderna de Macbeth.

O riso, o raso e a rezaOnde histórias criam vida. Descubra agora