Careca

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Ela olha bem nos seus olhos e manda: "Você foi bem espertinho, né? Chegou até mim quando você ainda tinha cabelo".


Sim, meus confrades, esse dia, cedo ou tarde, chega. O infeliz sabe que chega, mas dificilmente está preparado. Dia após dia, brisa após brisa, fio por fio que se esvai, ralos e mais ralos de banheiro forrados das boas, saudosas e sedosas madeixas, sabe-se que, uma hora, a tão afamada careca entra no jogo. Pode-se excomungar o pai e sua carga genética; culpar a Deus e sua ironia divina; maldizer o mundo e sua estética mesquinha, mas de nada adiantaria.


"Chegou em mim quando você ainda tinha cabelo... esperasse mais um pouco, já viu, né?"


"Já viu..."? Uma ameaça, um eterno trunfo nas mangas. Uma moeda de troca até se bater as botas.


- Escrevi um livro...

- Escritor careca.

- Compus uma música...

- Autor careca.

- Adoto cachorrinhos...

- Bom-moço careca.

- Inventei um dispositivo que provará a existência de vida em outros planetas...

- Nerd careca.

- Sou a favor de cotas, saúde pública, ensino de qualidade...

- Nerd, socialista, careca.


Oh, mundo cruel, cuja careca suplanta todos os atos e benfeitorias. Pior: às vezes nem é tanta careca (ainda) assim. Talvez nem precise puxar os muletts laterais para cobrir a parte superior.


"O dia que você fizer isso, não sei se nosso amor resistirá".


Então você pensa no padre e naquele papo todo que diz que "na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na careca... Não, não, careca já é demais."


Assim caminha o pobre coitado até o ocaso da vida, sabendo que será sempre olhado de cima para baixo, tendo como porta de entrada dos (pré)conceitos a iminente careca.


E não adianta dizer que ela facilita a vida, que se economiza xampu, que se ganha tempo no banho, que as toalhas se encharcam menos, que pentes jamais entrarão no terror de se fazer um orçamento, que os futuros filhos (pobre Betinho Neto) terão 50% menos probabilidade de ter piolhos...


- Você está querendo dizer que eu passarei piolho para os nossos filhos?

- Não, não... só para a menina.

- Era só o que me faltava. Tua sorte é que eu amo cada pedacinho seu.

- Bom, se compararmos com as fotos de quando começamos a namorar, vai amar a cada ano um pouco menos.


Fazer o quê? Resta seguir caminhando, mais leve a cada fio que se vai e torcendo para que aquela velha marchinha de carnaval continue a ser um fio de esperança. Fio... ai, ai.

O riso, o raso e a rezaOnde histórias criam vida. Descubra agora