Quando quase dei o passe para Chico Buarque marcar um gol

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Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. Fui trabalhar comocorrespondente e produtor de TV e rádio na maior competição daTerra. Grandes dias, certamente minha maior realização profissional. Estava por lá, na lida, havia algum tempo já quando, não melembro o porquê, Chico Buarque veio à tona em uma conversa commeu amigo e à época chefe naquela empreitada, Adriano Rattman. 

– Chico é o maior artista brasileiro vivo, independente daforma de arte. – Disse eu. 

– Não sabia que você gostava tanto dele assim. – Ele emendou. 

– Muito, sou um grande fã. Inclusive tento arranhar seusacordes no violão. São dos mais difíceis. 

– Eu tenho um amigo que o conhece. Sempre joga bola comele. Não sei se você sabe, mas o Chico gosta muito de futebol. 

– Se sei. Ele tem um time próprio, o Politheama, e sempre sevangloria de sua invencibilidade. 

– Isso, isso. 

A conversa cessou por ali, seguimos com outras amenidades,quando me deu o clique. 

– Você disse que é amigo dum amigo do Chico? 

– Sim. 

– E fala isso assim, como se estivesse chupando jabuticaba? 

– Queria que falasse como? 

– Oi? É o Chico Buarque. Ô Chico! E o cara joga bola comele? 

– É. Uma vez ele até me convidou pra ir lá jogar com eles. 

– E o que você tá esperando? 

– Como assim? 

– Ora, liga pra ele. 

– Pra quem? 

– Pro seu amigo, cáspita

– Mas ele me convidou uma vez, muitos anos atrás... 

– Liga. 

– Mas... 

– Liga! 

Acho que poucas vezes na vida falei algo de forma tão autoritária. Depois me senti mal, afinal, como está escrito naquela faixaem uma famosa fotografia, sou "Contra toda autoridad.... Exceptomi mamá". Mas enfim, ele ligou... E o amigo respondeu. 

Resumo da ópera: depois dum pá daqui, pá de lá malandrovisk do Adriano, o dito disse "sim, amanhã é dia de futebol lá noPolitheama. Me encontrem na entrada às 14h em ponto. Depoisdesse horário não entra mais ninguém". 

"Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar!" 

Para tentar descrever como eu fiquei internamente, imagineum personagem de desenho animado que acaba com uma barra deferro recém-saída de uma forja sobre as mãos e, em vez de largarao chão, sai correndo para todos os lados procurando um tanquecheio de água para lá se tacar. Gente, eu ia jogar bola com o ChicoBuarque. 

No dia seguinte, terminamos a transmissão ao vivo para aTV, direto do Parque Olímpico, e saímos em desabalada carreirapara nos preparar com os devidos apetrechos. Chuteira, meião, calção, o Adriano colocou sua faixa-segura-suor na testa, estilo GugaKuerten, e seguimos para o Recreio dos Bandeirantes. Era longe,mas chegamos a tempo. Encontramos o tal amigo e fomos entrando. Muitas pessoas estavam por lá, alguns conhecidos, outros nemtanto, uns quase famosos e verdadeiros mestres. Vi, por exemplo,Wilson das Neves de baquetas na mão, mas nada de Chico. 

O tempo passava... As rodinhas de conversa eram o aquecimento. Ao que tudo indicava, depois haveria alguns salamaleques gastronômicos e bebericativos, mas antes não. Era regra do Chico:futebol em primeiro lugar, sem distrações. "Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão". 

Enfim, ele chegou. 

"O meu amor tem um jeito manso que é só seu." 

E agora? Vou lá? Não vou? "Respeita o espaço do cara, Beto,respeita". Ao mesmo tempo, minha outra identidade, que duelavalá na mente naquele instante, dizia "Vai lá, quando terá outra oportunidade dessas?" E fiquei nessa, vou, num vou, vou, num vou...Quando voou em minha direção um colete. Vermelho. O "técnico"que o arremessou era Rildo Hora, o maestro (não é de se surpreender), que, como se soprasse uma harmônica, falou "garoto, vocêfica no banco". Ok, professor. Levantei os olhos e vi que Chico jáseguia para o centro do gramado, também de colete vermelho. Faztodo sentido. 

Não desesperei. Sabia que em dado momento entraria, nemque fosse por alguns minutos. Algo me dizia que na ponta-esquerda, o mais indicado àquela altura e história. Era só aguardar. "Mascomo agora apareceu um portador, mando notícias nessa fita". 

A partida seguia para o seu final, 2 a 2, sendo ambos os daequipe adversária feitos pelo Adriano, que ficou na outra equipe eentrou logo de titular. Cada vez que ele marcava eu pensava "issonum tá certo, a gente é convidado". Mas em se tratando de futebolele é assim mesmo, o que importa é bola na rede, nem tanto a diplomacia. Enfim, foi quando Rildo Hora olha em minha direção ediz "aquece". Num salto me levantei. Era a minha chance. Fechei osolhos e, enquanto fazia polichinelos, imaginei a bola em meus pés, na intermediária de ataque à esquerda (ufa!), conduzindo, driblando um, dois e tabela com o companheiro Chico adiante, de centroavante. Nesse instante, eu chego perto dele e digo, "Chico, tenhouma composição, quer dar uma olhada?" É quando o seu Rildogrita: "Ei! Vai entrar ou não?" e eu estalo. A placa está levantada eCarlinhos Vergueiro sai para me dar lugar. "É a falta de sorte, é avida, é a morte, é a contrapartida". 

A bola não chega até mim e o relógio vai passando. Tentome posicionar próximo ao centro, onde sempre é mais cômodo seestar, no futebol e na vida, mas nada da pelota chegar. O técnicoà beira do campo gritava. Eu não ouvia. Só pensava "vamos, nãopode acabar assim, sem eu sequer tocar na 'gorduchinha'". E entãoaconteceu. Contragolpe rápido. Começo a correr num vão deixadopelo lateral direito que não me deu importância – "Estava à-toana vida..." – e a bola é lançada em minha direção. Chico me acompanha, não faz sinal ainda para que passe a bola para ele, dá a impressão que confia em mim, que sabe que sei o que estou fazendo.Aquilo me enche de entusiasmo. Corro como se tivesse um pulmãode 20 anos. Dói. Porém sigo firme, é a última corrida, a definitiva.O defensor parte em minha direção: um ex-zagueiro do Fluminense dos anos 80, não me recordo seu nome. Percebo que é lento, mastenta me intimidar bufando e gritando "eu vou te pegar, eu vou tepegar...". Logo ele salta num carrinho cuja pena prevê 10 anos semcondicional. No tempo em que ele está no ar em sua tentativa deme alijar de algum membro, mirando na altura dos joelhos, vejoChico na linha da pequena área, sem marcação. Respiro fundo, travo a corrida e dou um corte seco. O saudoso zagueirão sem nomepassa flutuando ao meu lado, olhos esbugalhados e aquela clássica feição da dor da perda. Enfim, não há ninguém entre mim e Chico,é só eu dar o passe certeiro e ele fará o gol da virada. Será a glória, ofato que renderá nostálgicas memórias, quiçá uma canção em parceria ou um belo capítulo num de seus futuros livros. 

Infelizmente, naquela manhã, nossa transmissão atrasou noParque Olímpico e nunca saímos de lá. Terminamos o trabalho às14h e levaríamos mais uma hora ao menos para chegar ao local.Em suma, não pudemos ir até o Recreio dos Bandeirantes e nunca encontramos com o amigo do Adriano. Ao menos dei ao meuentão chefe dois gols nessa pelada em crônica, para pagar a dívidapela ligação e singela tentativa. "Tinha cá pra mim que agora simeu vivia enfim o grande amor... Mentira". 


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