Ela tomou seu café e foi até seu cubículo, uma mesa ao redor de dezenas, centenas de outras. Ao chegar lá encontrou um bilhete que dizia:
"Antes de sair preciso falar com você.
O D. ".
Droga... ela sabia que teria de ouvir o sermão de seu chefe. Ela não devia deixar nenhum nome escapar de seus serviços, de sua consultoria, sabia disso, mas mesmo assim, ela dava mais uma chance à eles. Sem pressa ela foi até a sala de seu chefe, O Divino. A porta de sua sala estava aberta – sempre estava aberta, quando O Divino fecha a porta, ele abre uma janela – timidamente ela olhou, esperando que talvez ele não estivesse ali, mas ele sempre estava presente. Viu a figura, um homem negro de cabelos grisalhos, usando seu uniforme, um terno preto, estava usando óculos e lia alguns papéis.
— Divino? Está ocupado? Posso passar aqui amanhã de manhã se você quiser. — Ela disse, esperando que ele aceitasse, pois Edna não aguentaria ouvir mais um sermão dele, sabia exatamente o que ele falaria. "Seu trabalho é fundamental para o bom funcionamento dos outros departamentos, você é fundamental para o bom funcionamento da vida na terra" e etc... Ela não estava com cabeça para ouvir aquilo, não hoje, talvez nem nunca mais. Ela estava de saco cheio daquilo.
— Não, não, estou sempre disponível. — Divino falou tirando os óculos e guardando no bolso de seu terno. — Entre, feche a porta e sente, Morthy. — Ela fez isso, estava com um olhar cansado e com uma grande olheira no rosto, sentou na cadeira diante da mesa de seu chefe e aguardou o sermão. Sabia que haveria um sermão, vai ter um sermão, era certeza.
— Edna, querida, você deixou passar cinco nomes, sabe que não pode ficar fazendo isso, não sabe? — Seu chefe, O Divino, tinha uma voz suave, o tipo de voz capaz de hipnotizar quem a ouve, uma mistura de voz de radialista e algo a mais, algo indescritível. Então ele começou o sermão, o mesmo sermão de sempre. — Vidas precisam ser ceifadas, seu trabalho é fundamental para o bom funcionamento dos outros departamentos, você é fundamental para o bom funcionamento da vida na terra e...
Neste momento, Edna começou a tremer, tremer sem controle, sua mão não tinha controle, ela sentiu algo em seus olhos, algo que nunca havia sentido antes. Eram lágrimas, as primeiras lágrimas que brotavam daqueles virgens olhos castanhos, aquilo era novo para ela, não sabia como lidar com aquilo, O Divino olhou para ela preocupado. Levantou de sua cadeira e sentou ao lado dela, Edna encostou sua cabeça no ombro de seu chefe e disse com a voz trêmula.
— Eu não consigo... não consigo mais... Divino, eu tento, mas... mas parece que não sou mais a mesma de antes, depois de tanto, tanto tempo, eu não consigo mais fazer isso...
— Mas esse é seu dever, querida. — O Divino, disse tentando consolá-la.
— Que dever é esse? Tirar vidas de meus clientes, trazer tristezas aos outros que ficam? Eu não entendo mais isso... eu não consigo mais, não consigo mais entender. — Edna Morthy chorou de forma nervosa, o que era aquilo que estava acontecendo com ela? Aquilo era novo para ela, ela era um espírito de morte, apenas uma morte diante de milhões, bilhões de outras mortes, nenhuma fazia aquilo, nenhuma chorava ou sentia pena de seus clientes. — Eu só trago tristeza... A morte só faz o mal.
Mas O Divino sabia que aquilo era normal.
Depois de tantos anos de trabalho seus funcionários chegavam ao ponto máximo de estresse e não conseguiam mais suportar aquilo, Edna não era a primeira morte a entrar em sua sala e lhe dizer aquelas coisas. Mas Edna Morthy tinha apenas 420 anos, era cedo para começar a sentir-se assim, normalmente isso começa depois dos 500 anos.
— Escute, meu bem, seque as lágrimas e...
— Lágrimas? — Perguntou Morthy, ela não sabia o que era aquilo.
— Isso que sai de seus olhos, são lágrimas, meu bem. Tome, seque-as com isso. — O Divino tirou de seu bolso um pano, como um bom cavalheiro, sempre carregava-o e entregou para ela.
— Ah sim, acho que sei o que é isso, já vi alguns clientes chorando. — Edna secou as lágrimas e encarou curiosa o pano, sentiu que ele estava molhado, era estranho descobrir que ela também podia fazer aquilo. Pensava que apenas os clientes, os vivos, eram capazes daquilo.
— Edna, escute, sinto que você precisa de uma licença do serviço, depois de 420 anos você merece...
"Férias?", pensou ela já meio confortada pela ideia, Morthy logo se imaginou pegando, ou fingindo, pegar sol nas praias do Rio de Janeiro. "Isso seria muito bom...", ficaria na praia apenas admirando o calor daqueles belos corpos, o calor que corria livre por aqueles corpos tão cheios de vida. Ela até conseguia ouvir o som do mar, aquele som estrondoso das ondas atingindo a areia da praia... Que coisa formidável seria aquilo.
—... Mas você deve fazer terapia durante essa licença, trata-se de uma licença médica.
Ao ouvir aquilo, o som das ondas batendo na areia da praia pareceu tão distante e tão impossível para Edna.
— Como assim? Eu só preciso de férias, não?
— Não exatamente, você, depois de tantos anos, possui muita coisa guardada dentro de ti, durante a terapia você vai poder colocar tudo pra fora, entende? — O Divino olhava para ela, tinha no olhar um tom de sinceridade e preocupação, pois Edna era uma amiga de longa data, uma funcionária muito querida. Mas ele sabia que agora ela estava pronta para o próximo passo, para a próxima etapa... — Depois disso, veremos se você pode voltar ao serviço.
— Mas, mas... e se... e se eu não puder? O que será de mim? — Edna sentiu algo novo também, era medo, afinal, o que seria dela se não pudesse exercer a função de morte? Ela foi criada para aquilo, se não fizesse, lhe restava a função de vagar na terra, sem responsabilidades, sem nenhuma função na Morte S.A., apenas vagando pela terra sem propósito algum. Seria apenas mais um espírito solitário, caminhando sem rumo e assistindo de camarote da vida dos vivos.
— Tudo vai acabar bem, eu sei disso. — O Divino lhe deu um sorriso, um sorriso cheio de paz e alegria. O cara era o chefe, então, ele sabia o que estava dizendo. — Tome aqui. — Ele foi até sua mesa, anotou num papel algo e entregou para Edna. — Aqui está o nome do doutor, quero que você se consulte todo dia com ele, tudo bem?
Ela olhou o papel e lá estava escrito:
"Dr. Giovanni Divinno – sala 217, edifício Eternidade".
— OK... mas e meus clientes?
— Fique tranquila, eles serão distribuídos para outros funcionários.
— Bom... se é assim, tudo bem. — Edna Morthy se levantou, caminhou até a porta, quando estava pronta para sair, O Divino falou.
— Fique tranquila, Edna, tudo vai ficar bem, eu sei disso.
Ela deixou seu chefe, O Divino, em sua sala e foi embora dali.
Foi até seu apartamento no prédio vizinho, ficava logo em frente ao prédio da repartição, atravessou a rua e observou a neblina densa que ocupava todo o céu. Certamente não era uma simples neblina, mas um conjunto de nuvens densas, pois ela e todos os outros funcionários estavam ali, muito próximo da terra, assistindo de cima o que acontecia. Chegou no apartamento, um pequeno apê de apenas um quarto, uma sala de leitura e um banheiro havia ali, era só isso que ela precisava, era pequeno, mas muito bem decorado. Era um ambiente charmoso, a decoração remetia a década de 1960, tudo estava muito bem preservado.
Tirou o vestido, seu uniforme de trabalho, colocou sua camisola, uma camisola de seda preta, por um segundo sentiu a brisa fresca da noite que entrava pela janela, sentiu seu corpo se arrepiar. Ela gostava de sentir aquilo, aquelas sensações... Deitou-se e tentou dormir, geralmente era isso que fazia, tentava dormir, pois o sono não vinha tão facilmente como antes. Ela demorava para dormir, quando o sono vinha, ela apenas apagava, desmaiava de cansaço, praticamente.
Amanhã ela teria de sentar e contar de si para um desconhecido.
Quem diria? A morte não é assim tão diferente dos vivos.
A Morthy realmente precisa de terapia.
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A Morthy no Divã.
Fiction généraleEdna Morthy é uma funcionária, uma trabalhadora, como outra qualquer. Todo dia ela levanta cedo e segue sua rotina: bate o ponto, toma um gole de café com seus colegas de profissão e pega a lista, a lista com nomes de seus clientes para o dia, clien...