O doutor assistiu Edna Morthy seguindo pelo longo corredor branco. Deu um "tchauzinho" com as mãos quando ela percebeu que ainda era seguida pelo olhar do doutor, enquanto aguardava pelo elevador.
Ele entrou no consultório e fechou a porta, não atenderia nenhum paciente no resto da tarde, decidiu colocar suas anotações em dia. Mas antes de sentar atrás da mesa e pegar a caneta de pena, ele foi até uma das estantes e ligou seu velho toca discos, começou a tocar Raul – o famoso rockeiro brasileiros, o Raul Seixas. O doutor era do tipo eclético, ouvia de tudo um pouco, não tinha um ritmo musical preferido: gostava de músicas clássicas, uma bela nocturne de Chopin, uma sinfonia de Beethoven; uma bossa de João Gilberto, ou os versos de Vinicius de Moraes; ou talvez, um bom rock n' roll de Elvis Presley.
Raul Seixas cantava "Canto para minha morte", enquanto o cantor começava seus primeiros versos...
"[...]Cada vez que eu me despeço de uma pessoa
Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez.
A morte, surda, caminha ao meu lado
E eu não sei em que esquina ela vai me beijar [...]".
...o doutor pegou algumas folhas em branco e as colocou sobre a mesa, sentou-se e molhou sua caneta de pena na tinta, começou a escrever sobre o caso de sua ilustre paciente, Edna Morthy.
"Paciente Edna Morthy.
Quinta sessão.
A paciente ainda parece estar meio confusa, não entende que, talvez um dia, não poderá exercer suas funções como morte na Morte S.A. Pude constatar que Edna já possuí o sentimento de pena, o sentimento de compaixão, para com seus clientes, caso ela volte ao serviço, isso irá prejudicá-la, dificultando que ela consiga ceifar a vida de seus clientes...".
O doutor interrompeu sua escrita e pensou, para ele estava claro que depois de 420 anos como morte, Edna não conseguiria suportar mais 100 anos na função. "Ela começou a sentir compaixão pelos vivos antes, muito antes, do que os outros casos", pensou, mas havia um motivo para isso, para essa criação prematura de compaixão.
"... Ao longo de 420 anos de serviço, Edna Morthy presenciou casos terríveis, mortes terríveis, é compreensível que ela tenha criado compaixão antes dos outros, fora dos casos normais.
Ainda não sei ao certo se ela está pronta para a próxima etapa – sua promoção. Anjo no paraíso ou anjo da guarda na terra? (Ele riscou essa parte e continuou). Ainda é cedo para dizer o que será – tudo tem seu momento certo. Devo verificar se Morthy criou empatia para com os outros, para com os vivos, pois ainda tenho dúvias...".
O doutor parou para ouvir os versos de Raul...
"[...]Vem, mas demore a chegar
Eu te detesto e amo, morte, morte, morte
Que talvez seja o segredo desta vida
Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida [...]".
Ele sorriu, achava graça, para ele, os vivos sabiam usar bem a graça em algumas situações. Conseguiam encontrar as palavras e o modo correto para fundí-las e criar algo completamente novo, algo próximo da perfeição... "Sim, talvez ela seja o segredo desta vida, sim...", pensou e continou a escrever.
"Acredito que ainda terei algumas longas sessões com a paciente, ainda quero ouvir mais suas histórias, quero ouvir dela com que modo ela agiu em determinadas situações:
- Tragédias;
- Idosos;
- E crianças.
Edna Morthy está muito próximo de receber sua promoção, sua redenção.
Dr. Giovanni Divinno.".
Doutor Divinno terminou, leu o que estava no papel, concluiu que era aquilo, nada tinha para incluir. Abriu a primeira gaveta de sua mesa e guardou suas anotações numa pastinha identificada com uma etiqueta, lá estava: Edna Morthy nº 1.456.999.01. Guardou a pasta, desligou seu toca discos e calou Raul, pegou seu chapeu branco do tipo fedora e o colocou sobre a cabeça. Abriu a porta do consultório, estava pronto para sair e ir para casa, mas esqueceu as luzes acessas, se encostou no batente da porta e fez um movimento com a mão direita, a deslizou no ar, de cima para baixo...
E então as luzes se apagaram.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Morthy no Divã.
Ficção GeralEdna Morthy é uma funcionária, uma trabalhadora, como outra qualquer. Todo dia ela levanta cedo e segue sua rotina: bate o ponto, toma um gole de café com seus colegas de profissão e pega a lista, a lista com nomes de seus clientes para o dia, clien...