Capítulo 6 - Segunda sessão.

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— Tudo começou quando... — Começou dizendo Edna Morthy, sentada no divã ainda não havia se acostumado com aquilo, afinal, aquilo era um sofá, ou uma poltrona? Ela explicava ao doutor como tudo aquilo havia começado. —... eu tive de atender um cliente, uma criança. Não foi a primeira criança que eu atendia, mas houve algo nela, algo naquilo que mexeu comigo, sabe?

O doutor Divinno usava o mesmo conjunto que antes – terninho branco e uma gravata borboleta, dessa vez de cor vermelha – acenou positivamente, indicando que havia entendido aquilo que ela dizia, ele realmente entendia.

Ele entendia tudo e todos.

— A criança vivia na época em que os bondes ainda circulavam pela cidade, ela estava brincando com seu pai no quintal de casa... estavam jogando bola. — Edna se lembrava daquilo como se fosse ontem, mas aquilo havia acontecido na década de 1930, na populosa cidade de São Paulo, no bairro da Mooca. A criança, um menino moreno, filho de imigrantes italianos, tinha os olhos azuis, de cor tão viva quanto o azul do céu daquele dia. — A criança era meu cliente, então eu fiquei atenta, prestei atenção a tudo que acontecia, enquanto pai e filho brincavam, decidi empurrar a bola para longe... pois, pois queria terminar logo com aquilo, tinha uma longa lista de nomes para verificar, sabe? Queria cumprir meu horário de trabalho... Não queria fazer hora extra.

Doutor Divinno estava sentado na poltrona, acenava com a cabeça para ela, enquanto anotava em seu caderno algumas notas.

— A bola rolou e rolou, saiu do quintal, passou pela calçada e cruzou a linha do bonde, parou do outro lado da rua... Meu cliente, a criança, não pensou duas vezes e foi correndo na direção da bola, o pai se distraiu por um segundo e não percebeu... a criança foi correndo sozinha procurando seu brinquedo, sua bola, mas parou na linha do bonde, assustado ao ver que o bonde vinha, não soube como agir. O motorista não teve tempo para frear, passou a toda velocidade sobre o tão pequenino corpo daquela criança, aquela bela criança que... — Edna suspirou, sentia que logo começaria a chorar e que as lágrimas começariam a rolar. —... que tinha toda a vida pela frente. Não demorou muito e eu senti sua alma pequenina saindo daquele corpo e passando para nosso plano, nosso mundo, logo tratei de riscar seu nome de minha lista, mas então veio o pai... o pai correndo de sua casa, vindo e abrindo caminho no meio de toda aquela gente que imediatamente se aglomerou. — Edna Morthy ficou emotiva e começou a chorar.

— Não tenha pressa, tome. — Disse o doutor, mais uma vez entregando o pacote de lenços de papel para Edna.

Ela lembrava da cor, da cor do sangue do menino, um vermelho tão nítido quanto a cor de seu cabelo, mas muito além disso, ela lembrava-se do choro, do desespero daquele pai, ela desejava esquecer daquilo, queria esquecer daquele desespero, daquele pobre pai.

— Eu lembro do pai vindo, olhando aquele pedaço de carne que a pouco fora seu filho e eu lembro... lembro do choro desesperado dele... foi ali que começou, eu senti algo por aquela criança, por aquele pai... eu quis que aquilo não tivesse acontecido, pois pelo pranto daquele homem, pude sentir como aquela criança era amada, como ela era adorada. Eu não entendi, não entendi por que aquilo devia ter acontecido. — Edna secou os olhos com as mãos, olhou para o doutor meio sem jeito e finalizou. — Foi ali que tudo isso começou, foi ali que eu comecei a me sentir diferente com esse negócio de tirar vidas.

Novamente os dois ficaram em silêncio, o doutor anotou algo no caderno, Edna olhava apreensiva para o relógio, pois não gostava disso. Não gostava de lembrar daquelas coisas, era difícil, depois de tanto tempo, se lembrar daquilo e contar, detalhadamente, o que havia acontecido. Era como se mais uma vez o bonde atropelasse aquele menino... Queria que aquela sessão acabasse logo.

A Morthy no Divã.Onde histórias criam vida. Descubra agora