Foi na década de 1970.
O Brasil passava pelo período, que alguns chamavam, de "milagre econômico", outros chamavam de "anos de chumbo". Os militares estavam no poder, a repressão estavam em seu momento de ápice. Dia após dia os brasileiros que confrontavam o governo, eram reprimidos, presos, torturados e mortos. Edna Morthy lembrava bem daquele período, ela presenciou coisas terríveis e naquele dia estava pronta para presenciar mais uma tortura, mais um ato contra a humanidade... Ela foi até seu cliente e assustou-se quando viu que o cliente era um senhor de idade, senhor Alfredo.
Devia ter uns setenta anos, usava uma roupa social, calça preta, camisa branca, suspensórios, finalizando o conjunto, usava sapatos mocassim. Usava óculos de grau do tipo ray-ban , eram óculos gigantes, as lentes invadiam a área de sua bochecha e sobrancelhas. Ele seguia sozinho pela rua, um quarteirão abaixo estava ocorrendo um tumulto, a polícia acabara de invadir a sede de um jornal, houve confusão, as ruas ficaram desertas. Todos tinham medo, parecia que depois de setenta anos seu Alfredo não se importava mais com aquilo, não tinha mais medo de nada. Não estava completamente sozinho na rua, pois Morthy o acompanhava, caminhando ao seu lado.
Um pouco à frente, um rapaz começava a fechar as portas de seu pequeno mercado, mas antes que conseguisse desemperrar a imensa porta, seu Alfredo se curvou e passou por de baixo dela.
— Que isso, seu Alfredo, eu to fechando a loja. — Disse o comerciante, estava decepcionado com aquilo. Queria fechar logo seu mercado e ir o mais rápido possível para a proteção de sua casa.
— É coisa rápida, rapaz. — Alfredo disse e foi partindo para dentro do mercado. — Preciso comprar um pouco de ração para meu cachorro... — Ele começou a tossir, uma tosse forte, do tipo que arranha a garganta. Imediatamente tirou do bolso da calça um paninho branco e o colocou em sua boca, na esperança de abafar a tosse. O comerciante ficou meio preocupado com aquilo, percebeu que não devia ser coisa boa, Morthy também percebeu. Sabia que seu Alfredo iria morrer, estava imaginando como... Logo a tosse cessou, quando o velho Alfredo olhou para seu pano se assustou com o que viu, pois o branco que antes dominava o pano, agora compartilhava espaço com imensas manchas de sangue.
— Puxa, seu Alfredo, o senhor está bem? Posso levar o senhor no médico se precisar, sem problema algum. — Disse o comerciante com sinceridade, ele conhecia seu Alfredo há muito tempo. — O senhor já foi no médico, se não foi devia...
— Já fui! Já fui! — O velho guardou o pano no bolso e continuou, sua voz era meio rouca, mas pelo seu tom percebia-se de que havia tristeza nela. — Não tem jeito, não tem jeito nenhum... — Ele fora diagnosticado com câncer no pulmão, estava em estado avançado, era incurável. Os dois ficaram em silêncio, o comerciante olhou com pena para o velho, Edna fez o mesmo, mas este saiu dali e foi pegar a ração de seu cachorro. Ele foi até o caixa, tirou a carteira do bolso, mas o comerciante interveio e disse que não precisava, era por conta da casa. — Ora, deixe disse, tome aqui e fique com o troco. — O comerciante aceitou, antes de sair o velho disse mais uma coisa. — Escuta, não é pra contar pra ninguém, entendeu?
O comerciante concordou, fez um pequena mímica, fechando a boca e jogando a chave fora.
Se despediram, aquela foi a última vez que o comerciante veria velho Alfredo.
Edna e Alfredo foram caminhando lado a lado pela rua, passaram pelo viaduto Santa Efigênia, ali o velho interrompeu seus passos. Parou no meio do viaduto e observou o horizonte, observou os carros que passavam pela avenida Prestes Maia. "Para quem ele contaria? Eu não tenho ninguém..." – pensou o velho – "...sem esposa e sem filhos, um sozinho na vida... realmente não queria terminar desse jeito". Uma lágrima rolou de seus olhos, encontrou dificuldade por causa das marcas de velhice em seu rosto, rugas e mais rugas, mas não demorou muito e o velho enxugou a lágrima e continuou sua caminhada de volta para casa.
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A Morthy no Divã.
Ficção GeralEdna Morthy é uma funcionária, uma trabalhadora, como outra qualquer. Todo dia ela levanta cedo e segue sua rotina: bate o ponto, toma um gole de café com seus colegas de profissão e pega a lista, a lista com nomes de seus clientes para o dia, clien...