Edna Morthy chegou ao consultório no mesmo horário de sempre, mas ele estava vazio. Olhou ao redor e não percebeu nenhum sinal do doutor, estava completamente sozinha ali, ela então foi até o corredor, talvez encontrasse ele por lá. Mas não havia ninguém, voltou para o consultório e então, como num passe de mágica, lá estava ele.
— Ora doutor, pensei que o senhor não estivesse aqui... o senhor não estava aqui, ou estava? — Disse ela entrando e indo se sentar no divã. O doutor, usando aquele terno branco, gargalhou, aquele tipo de risada contagiante.
— Edna querida, pode não parecer, mas estou presente em todos os lugares, em todos os momentos. — Depois de dizer essa frase profética, o doutor se calou por um momento e encarou Edna, percebeu pelo seu rosto de que algo não estava bem. — Então? Você fez sua lição de casa?
Morthy se assustou quando o doutor disse aquilo, ela havia pensado, havia lembrado de alguns clientes que haviam lhe marcado, mas com o pesadelo que teve ontem de noite, ela acabou esquecendo daquilo.
— Bom, eu fiz... — Morthy procurou se lembrar de algum caso, algum cliente que havia lhe marcado, acabou lembrando-se de um, um sujeito com muita sorte, ou talvez pouca... — Um cliente, acho que chamava-se João, ou era José... era novo, deveria ter uns quarenta anos. — Isso mesmo, Edna se lembrava bem deste caso. José Ribeira, 42 anos, publicitário na década de 1960. — Eu o segui, fiquei próximo dele o tempo todo, sempre espreitando, ele tinha de morrer e eu estava lá esperando que isso acontecesse, mas pobre José...
Edna deu um sorriso, um sorriso meio sem jeito.
— Coitado de José por que? — O doutor perguntou isso enquanto segurava sua caneta de pena, alisava seu rosto com ela, a sensação era boa.
— O coitado estava num momento tão bom! — Edna Morthy disse e deu um tapinha em sua perna, dando ênfase àquilo e era verdade, ele estava num momento muito bom mesmo. — Ele conseguiu trazer um grande cliente para a empresa, seu chefe disse que ele viraria sócio, ele queria muito aquilo e ficou muito feliz por ter finalmente alcançado isso... acho que dali em diante ele seria muito feliz.
— Foi por isso que ele a marcou? Por não dar nenhum sinal de que iria morrer, de que continuaria vivendo feliz... feliz para sempre? — O doutor lhe perguntou e fechou a cara, ficou sério, ela sentiu que o clima ali ficara um pouco pesado. — Apesar das conquistas, apesar daquilo que eles fazem, você não sabe o que passava na mente de João, Morthy. Ser, por exemplo, milionário não impede que a morte venha, afinal... ela vem para todos, não é mesmo?
— Sim... Eu fiquei meio sem jeito de fazer aquilo, mas eu fiz...
— E como fez?
Edna se lembrou...
Lembrou do cheiro da década de 1960, não era um cheiro muito agradável, era um cheiro forte de cigarro, as pessoas fumavam a todo momento, nada as impediam. José era fumante, saiu do serviço e estava pronto para começar seu happy hour, Edna – que naquele tempo usava um terninho preto, uma imitação sombria do terninho rosa que a primeira-dama dos EUA, Jacqueline Kennedy, usou naquele dia, 23 de novembro de 1963, um dia fatídico... – continuou seguindo José, ela esperou que algo acontecesse, que um raio rasgasse o céu e atingisse-o, que um ladrão viesse e lhe desse o tiro fatal, mas nada, absolutamente nada aconteceu!
Ela então fez uma coisa...
— Eu... eu dei uma rasteira nele, ele se desequilibrou e... e bateu a testa na calçada. — Sim, foi isso mesmo, José caiu e o impacto da cabeça no concreto foi tão forte que ele logo ficou inconsciente, literalmente rachou a "cuca". — Ele morreu no caminho para o hospital, dentro da ambulância.
— Entendi, mas você fez seu trabalho, não fez? — Edna acenou com a cabeça, sim, ela havia feito o serviço de modo fenomenal. — Por que isso lhe marcou?
Morthy pensou, ficou meio sem jeito de falar aquilo, pois o doutor ainda estava sério, com a cara fechada.
— Eu fiz, mas me arrependi... eu podia ter... ter...
— Ter dado mais um dia, ou dois de vida para ele? — Perguntou o doutor.
— Isso! — Edna disso meio entusiasmada. — Poxa, ele podia ter aproveitado mais um pouco aquele momento.
Eles ficaram num silêncio constrangedor, apenas o som do relógio podia ser ouvido. O doutor colocou seu caderno e sua pena sobre a mesa de centro, cruzou os braços, dessa vez deu um sorriso para Edna e disse.
— Se o nome dele estava na lista, era para ser assim... Você fez seu trabalho, fez seu trabalho de modo muito criativo, devo dizer. — Ele gargalhou quando disse isso, mas continuou. — O nome dele estava na lista, tinha de ser feito, vai saber o que poderia ter acontecido se ele tivesse vivido, talvez, por mais dez anos? Mas não adianta nada questionar essas coisas, elas apenas devem acontecer...
Edna acenou com a cabeça, ela realmente entendia que tinha de acontecer, mas ela queria, queria mesmo saber o por que daquilo. Talvez Edna não conhecesse bem José, talvez José fosse uma péssima pessoa, mas também ele poderia ser um ótima pessoa, isso afligia ela, depois de 420 anos de serviço ela parou de entender como as coisas funcionavam e por que elas deviam funcionar daquele jeito.
— Bom, quero que você continue refletindo sobre esses clientes, na próxima sessão quero que você me conte outro caso, também continue dedicando uma parte do tempo para você. — Edna pensou "mas o senhor não dirá nada sobre o caso de José?". — Não há nada mais o que dizer sobre José... — Morthy ficou assustada quando o doutor falou aquilo, será que ele conseguia ler a mente dela? Será que ele conseguia ler a mente de todo mundo? — ... você fez o que devia ter sido feito, minha querida.
— Eu fiz o certo? Mesmo tendo feito de modo tão estúpido... — Edna se lembrou da rasteira que deu em José – pobre José – talvez tenha sido o único modo. O doutor gargalhou, deu um risada contagiante, aquele clima pesado de antes havia ido embora.
— Independente do modo que foi feito, você fez seu trabalho, eu já vi meios mais estúpidos... — O doutor olhou para o chão, deu um meio sorriso. — Mas isso não vem ao caso, tudo bem?
A sessão terminou, os dois se levantaram.Edna esperou, sabia que o doutor lhe daria um abraço e assim o fez. Os braços do doutor se abriram e logo envolveram Edna com carinho e afeto, parecia que a cada abraço que Edna recebia do doutor, ela recebia uma força, um pouco de motivação para continuar seguindo.
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A Morthy no Divã.
Fiksi UmumEdna Morthy é uma funcionária, uma trabalhadora, como outra qualquer. Todo dia ela levanta cedo e segue sua rotina: bate o ponto, toma um gole de café com seus colegas de profissão e pega a lista, a lista com nomes de seus clientes para o dia, clien...