Quem resistirá?
Naquela manhã as coisas estavam diferentes entre nós duas. Não um diferente ruim e sim só diferente, iluminada acho que seria a melhor maneira de defini-la. Ao contrário dos outros dias minha mãe ligou logo que acordei e já me fez o grande favor de destruir toda luz.
Ligação on
Mãe: Filha você sabe o compromisso dessa segunda, né?
Eu: Eu tenho um compromisso?
Mãe: Filha você já se esqueceu da sua consulta mensal e do... – sua voz pesou – seu sonho? – Putz! Me esqueci completamente de que ela havia marcado essa consulta antes do acontecido.
Eu: Ahhh... Claro que não me esqueci e eu vou sim! Saio daqui hoje a tarde e de manhã estou aí.
Mãe: Não queria que vinhesse sozinha. Sabe como são as pessoas...
Eu: Não irei sozinha. – a cortei bruscamente.
Mãe: Eu te amo minha filhinha. Sinto saudade!
Eu: Logo acabaremos com ela. Bye!
Ligação off
Minha mãe sempre odiou despedidas. Ao contrário de tudo mundo ela não diz tchau para ninguém, ela simplesmente se resume a um silencioso olhar. Ela só ficou assim depois que o papai foi preso, antes ela falava normal mas agora essa palavra abandonou o vocabulário de Dona Diana. Um tempo atrás enquanto conversávamos ela deixou escapar os reais motivos dessa atitude um tanto estranha. Sua família é estranha! Obrigado por me lembrar, mas voltando ao que eu dizia, durante um café da tarde enquanto Diana estava no sofá e eu me sentei no chão ao seu lado, papai passou por nós beijando minha testa e dando um selinho em minha mãe. Ele nos disse tchau e ela simplesmente o puxou e lhe deixou uma marca de baton vermelho no rosto.
Quando ele saiu perguntei a ela por que nunca dava tchau para o papai, não compreendi resposta de imediato mas ouvi atentamente porque sempre soube que tudo que minha mãe dizia um dia faria sentido. “Jamais vou me despedir de alguém que não quero que vá mas como esse alguém precisa ir, lhe deixo algo que o faça lembrar de onde veio, quem o espera e, principalmente, motivos para voltar" essas foram suas únicas palavras antes de mudar de assunto completamente.
Mal desliguei o celular escutei o som do quarto de Marcelly explodindo a casa de tão alto. OK que era domingo mas eram nove da manhã! Corri até o quarto dela e tentei abrir a porta, mas a mesma estava trancada, tocava don't let me down e eu podia ouvir o som da voz dela cantando localmente. Gritei mais Marcelly não me ouviu. Sei que é extremamente errado invadir o quarto das pessoas mas por precaução eu tinha uma cópia da chave do quarto dela então decidi entrar.
O quarto era um campo de guerra. A cama estava dos avessos, com os lençóis bagunçados e espalhados até pelo chão, um fone de ouvido estava destruído jogado perto do guarda-roupa, seu quadro de anotações na parede estava todo rabiscado de caneta preta e vermelha tampando algo que foi escrito mais logo desfeito, havia uma camisa rasgada no chão que provavelmente foi largada ali e o que mais me assustou foi a enorme mancha de rímel preto no travesseiro.
Me aproximei com um aperto no coração. Ela não teria capacidade de trazer uma menina para cá depois de ontem, me senti ridícula e uma ânsia se formou em minha garganta, a única coisa que queria naquele momento era me jogar de uma ponte. Abri a gaveta da comoda de Marcelly, local onde eu sabia que ela havia guardado a minha lâmina no dia em que ela me achou no banheiro, e comecei a procurá-la aflita.
A traição é a pior dor que podemos sentir em toda nossa vida. Fui arremessando tudo e que havia dentro da gaveta no chão, no entanto no extato momento em que a música mudou para Different way eu encontrei uma caixinha de veludo azul marinho e Marcelly abriu a porta do banheiro em que estava trancada. Abri a caixinha sem dar atenção a sua chegada. Dentro dela estavam acomodadas duas alianças em prata e um pequeno bilhete que dizia “Jamais entregue-a a uma pessoa qualquer. Dê ela ao amor da sua vida!". Uma lágrima de surpresa surgiu em meu rosto ao ver que em uma estava escrito Marcelly e na outra Luisa/Lou. Esqueci novamente como se respira, fiquei rindo e chorando ao mesmo tempo, me virei para Marcelly que estava na porta.
Meu sorriso desapareceu quando a vi me olhando atônita, não por ela ter visto que mexi nas suas coisas e sim por ela estar com um short curto, um cropped de ursinho e sua inseparável camisa xadrez amarrada na cintura. Seu rosto estava coberto de lápis e rímel borrado formando um enorme caminho negro em suas bochechas, provavelmente a causa da mancha no travesseiro, e um baton vinho todo rebocado de alguma passada de mão no rosto. Nunca havia visto Marcelly de menina mas com certeza aquela cena dela destruída foi impactante.
– Quando ia me dar? – perguntei calma e compassiva, mas ela continuou calada – Eu aceito! – respondi sem ela ter ao menos perguntado.
– Antes preciso saber se isso não é só uma ilusão. – Marcelly disse séria, acho que recuperando seus sentidos ainda.
– Como assim uma ilusão? – estava confusa.
– Preciso saber se você realmente aceita a nossa enorme diferença em relação aos casais normais.
– Eu compreendo essa diferença! – eu sou capaz de entender que em alguns pontos tudo vai ser totalmente contrário ao que sempre ouvi as pessoas dizerem.
– Certeza mesmo? Você ainda ficaria comigo se eu me vestisse como uma menina e me portasse como uma? – seu tom era acusador – Você andaria comigo nas ruas se as pessoas pudessem perceber nitidamente a nossa diferença dos casais comuns? Você ainda me beijaria em público sabendo que parte das pessoas vão sentir nojo e te olhar como se você fosse o ser mais horrível da face da terra? – sua garganta falhou e ela engoliu seco – Ou isso tudo é uma simples ilusão de ter um cara que tem todas as características de uma amiga, mas mesmo assim ainda é vista como um HOMEM? Saiba que embaixo desta roupa você vai encontar uma mulher.
A raiva brotou em meu peito por saber que ela ainda não confiava em mim, apesar de tudo sua angústia tem um fundo de realidade. Nos primeiros dias eu realmente a achei linda como homem, pensando nela como homem, mas as coisas mudaram. Senti na última parte de suas palavras um resquício de magoa do nosso beijo na noite anterior quando recuamos, ou EU recuei. Analisando a situação talvez não tenha sido como pensei que fosse. Por mais que não tenha vindo de uma família preconceituosa me mantive ligada ao que a sociedade sempre difundiu na mente de todos. Minha mãe sempre me ensinou como agir para me proteger de doenças, o que fazer na primeira noite ou que iria encontar e sentir. Mas ninguém nunca mostrou o outro lado, somos ensinadas a esperar por um peitoral reto e firme com uma barriga torneada e braços fortes , sem contar o volume nas partes baixas, e ao invés disso, encontrei um par de seios macios em uma barriga lisa. Realmente vejo o quão ridícula fui em pensar que meu choque pelo inesperado seria sentido por outrem.
– Você precisa de uma prova? – perguntei já sabendo a resposta.
– É eu preciso. – ela disse meio atordoada ainda.
– OK então!
– O que vai fazer?
Peguei meu celular e fiz uma chamada de video para minha mãe via WhatsApp, meu pai atendeu.
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Uma Quase Suicida (EM PAUSA)
De TodoApós ter uma infância conturbada, graças a um sequestro, por sorte Luisa e seu pai encontraram Diana que mudou a vida de todos. No entanto, os momentos de sofrimento lhe deixaram sequelas irreparáveis, ela descobriu ter esquizofrenia. Mesmo taxada d...