08 - Lasanha

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Abri os olhos esperando que a cena do meu quarto se repetisse. Tinha me preparado para estar sozinho e seguir a minha vida. Rafael me prometeu a melhor noite da minha vida. Foi a melhor. Mas era uma noite que ele havia citado, não uma temporada, um mês, uma relação e ficaria tudo bem. Ou não.
Sim, eu estava sozinho. Mas a casa não era minha e eu não sabia ao certo qual a minha localização. Pensei em ligar para os meninos, mas era impossível. Esperar Dogão era uma alternativa, porém não queria forçar nada ou causar um constrangimento. Forcei minha mente a pensar no que fazer, mesmo ainda estando deitado e lembrei que a algumas quadras dali era o galpão da escola de samba. Ia ser mais fácil ir embora.
Peguei minha insignificância, levantei, lavei o rosto, pus a roupa, dei uma última espiada na varanda e me preparei para sair. Tinha que ser discreto para ninguém desconfiar ou perguntar o que um estranho estava fazendo na casa do chefe. Na verdade, eu não seria tão estranho assim, por causa da ONG e isso definitivamente era pior. Deus me protegesse os ouvidos se minha mãe descobre onde passei a noite.
A mão tremeu um pouco na maçaneta quando fui abrir a porta, contudo, sofri uma força não esperada que me empurrou para traz.
-Carai Gui, nem te vi aí. Foi mal. -dizia o dono do meu transtorno mental sorrindo.
-Tem nada não, Dogão.
- Eu fui comprar umas coisas pra gente tomar café e adiantar logo o almoço.
-Ah, beleza. Precisava não.
-Claro que precisava.
Rafael retirava as coisas da sacola me encarando ainda com um sorrindo que aos poucos se desfez. Aproximou-se de mim, ainda mantendo certa distância, parecia estar receoso e analisando-me, perguntou:
-Você tava indo embora?
Não consegui responder de imediato. O modo como ele me perguntou, com as mãos entrelaçadas, sem me encarar nos olhos, um sorriso um tanto amarelo. Ele estava nervoso. Parecia que eu tinha o controle da situação, quando, minha vida se resumia a insegurança.
-Eu acordei e não te vi. Achei que tivesse ocupado e não queria te atrapalhar, sei lá. E aqui não é minha casa, né. Então ia sair e te mandar mensagem depois.
-E agora que viu que eu não estou ocupado e que tava planejando o dia com você... -coçou a cabeça, repetidas vezes- Vai ficar?
Fiquei imóvel. Nem eu consigo mensurar o quanto queria permanecer naquela casa, com ele. O problema é o que aquilo significaria pra mim e o que significaria pra ele. E minha cabeça estava muito fraca para aguentar, quem dirá meu coração.
-Eu não...
-Por favor. -se aproximou, ficando a dois passos de mim- Tem um montão de coisas que eu não daria conta sozinho. Hoje é dia primeiro. Ano Novo. Passa comigo, moleque?
Quem resistiria?
-Se minha mãe me encher o saco eu falo que a culpa é sua.
-Sério que você vai ficar? -soltou aquele sorriso outra vez. Meu presente de ano novo estava dado.
-Vou.
O que aconteceu naquele instante foi uma das cenas mais lindas que eu já tinha participado. Rafael me abraçou, muito forte, beijou meu pescoço algumas vezes e gargalhou antes de olhar no fundo dos meus olhos e me permitir ver seus glóbulos marejados e soltar:
-Obrigado.
Pegou em minha mão e me levou ao quarto.
-Enquanto eu vou preparando o café muda de roupa aí, ou fica sem mesmo. Não ligo. Só ponha algo mais fresco que hoje tá muito quente.
Abri seu guarda roupas e óbvio que eu pegaria a camisa do Mengão. Procurei por ela e quando vi que ela cobria a maior parte do meu corpo, já que aquele brutamontes tinha uns 15 centímetros a mais que eu, resolvi ficar só com ela.
Voltei para a cozinha e tive o prazer em ver o cara que tinha roubado meu coração quase babar quando me viu usando sua roupa.
Graças aos céus que ele não é nenhum gentlemen e largou o que estava fazendo e me beijou de forma quente, derrubando a nós dois no sofá. Sua boca trabalhava na minha, enquanto sua mão direita apertava minha cintura e descia pela bunda e a sua esquerda controlava-me pela nuca causando arrepios diversos. Nossos membros mais pareciam rochas e buscavam rasgar os tecidos de qualquer forma. Minhas mãos arranhavam aquelas costas nuas. Nossas bocas revezavam entre beijo e gemidos causados pela intensidade. Até que precisamos de ar.
-Não resisti. -confessou.
Eu sorri.
-Você tá acabando comigo, moleque. Depois de noite que a gente teve, foi quase impossível dormir sem tentar te tocar novamente e agora você desce assim, eu não consigo me controlar com você. É sério. -chupou meus lábios.
Enquanto isso, eu só sabia gemer e sorrir.
-A minha vontade é de te foder nesse sofá o dia todo, usando a minha roupa e olhando nos meus olhos enquanto entro em você. Mas agora a gente vai tomar café e curtir o dia um pouco. Não quero te machucar.
Dessa vez o beijo foi delicado. Depois de explorar todo o meu pescoço e quase me obrigar a implorar para transarmos, fomos para a mesa.
O que você comeria na manhã do dia 01 de janeiro? O maluco comprou nada menos que capuccino, caso não quisesse, tinha suco de manga. Para comer, tínhamos bolo de laranja com calda de chocolate, o maldito fez misto (sanduíche de presunto e queijo quentes). A missão era comer tudo.
-Come tudo que pelo jeito o almoço vai sair tarde hoje.
-Com esse tanto de coisa eu nem vou almoçar.
-E dispensar a lasanha que a gente vai montar? Nem pensar.
-O quê? Como assim?
-Nunca fez uma lasanha?
-Minha mãe já fez, eu sei nem errar.
-Hoje é o dia então. Vai ser massa, você vai curtir.
Terminamos o café, até hoje não sei como. Depois disso sentamos na varanda e trocamos ideia sobre a vida e sobre meus planos. Certa hora notei que só eu quem falava de planos e percebi que até agora eu não sabia de nada sobre ele, que não fosse o apelido dele.
-Me fala sobre você, Rafa.
-Eu? O que você quer saber?
-Sei lá. Eu não sei nada sobre você. Saber da sua vida, projetos, o que tu quiser falar.
-Ah véi. Sério?
-Uhum. Quer dizer, se tu quiser.
-Faz a pergunta, então.
-Caraca. Nem sei o que perguntar.
-Tu quem quis, manda aí.
-Tem planos pra o futuro? Sei lá, mudar pro asfalto. Viajar. Conhecer o país.
-Não quero sair do morro não. Mas acho que viajar é uma boa.
-Você pretende mudar de vida?
-Em que sentido?
-Ah, você sabe... todo mundo sabe das coisas aqui... e... ah... nem sei... deixa pra lá.
-Fala Gui.
-Você não tem medo de viver nesse mundo não?
Rafael parou e pensou. Estava longe. Muito longe.
-Desculpa, vamos mudar de assunto. Eu não queria falar disso. -me desesperei com o silêncio.
-Eu não tenho mais o que perder, Gui.  Não tenho do que ter medo.
Dessa vez fui eu que me calei.
-Tu sabia esse tempo todo?
Me tirou do transe depois de um tempo. Apenas assenti.
-E ainda assim não teve medo? -se preocupou.
-Você não me deixou ter.
Encaramo-nos por um tempo. Eu estava tímido, mal conseguia sustentar o olhar. Ele me prendia e analisava minhas reações, parecia uma máquina de detectar mentiras. Não sabia pra que se eu nunca tive o poder de esconder algo dele. Era impossível.
-Que tal vermos um filme?
-Uhum.
Escolheu um terror. Nem sei qual filme era. Tudo que lembro era do Rafael deitado atrás de mim no sofá, sua perna em cima das minhas, seu braço cruzando minha barriga e o outro servindo de travesseiro pra mim. Descobri a real intenção dele quando os selinhos começaram a arrepiar a minha pela na altura do pescoço. Em sincronia, sua pélvis movia-se contra a minha bunda, na deixando a par do que ele queria. Sua mão invadia meu corpo por baixo da camisa e vagarosamente achava meu membro completamente excitado por debaixo da sunga. Apertou-o e sussurrou:
-Eu vou foder você durante todo o filme, bem de vagar pra você me sentir por completo. E você vai continuar prestando atenção no filme.  
Devia ter se passado uns 20 minutos de filme. Eu teria que aguentar mais uma hora, melhor, eu teria uma hora para aproveitar. Já dentro, ele fez o que prometeu. Movimentou-se bem devagarinho dentro de mim, saindo quase por completo e penetrando outra vez. Ao mesmo tempo que me masturbava levemente, não me deixando nunca perder o tesão. Nem tinha como, sua língua e sua boca sugavam minha pele em mais um dos chupões que me dava. Toda vez que eu gemia ele sussurrava com aquela voz malditamente grossa em meu ouvido:
-Preste atenção no filme, meu moleque!
Juro que eu tentei. Mas nem susto eu tomava. Sabia apenas sentir aquele homem me possuindo do jeito que queria e me deixando nas nuvens. Não sei nem se eu gozei, mas suas mãos estavam meladas quando terminamos. Êxtase.
Tomamos mais um banho, com beijos caudalosos. Ao fim, ele me enxugou com calma e carinho. Fico pensando se ele queria aproveitar mais meu corpo ou se ele queria cuidar de mim naquele gesto que fazia.
Apenas de cueca descemos para a cozinha e organizamos o almoço. Não sabia como seria divertido montar uma lasanha. Nem imaginava que existia uma massa especial para isso. Rafael foi paciente e me mostrou tudo, claro que ele abusou de mim um pouco, me pondo para lavar todas as vasilhas. Mas foi legal.
Enquanto a massa estava no forno, o dono da minha perdição foi atender o celular. Fiquei esperando qualquer mudança de planos pois aquilo significava o que eu desconfiava. Era por isso que as promessas sempre seriam curtas ou vazias. Mas se eu pensasse que pra quem veio passar uma noite e está na casa dela até às 15 horas, era um lucro. Claro que eu voltaria a ter minhas paranoias. Dessa vez, pelo menos, eu tinha aceitado.
Comecei a jogar Snack no celular enquanto o tempo passava até a hora em que o Luiz saiu do quinto dos infernos e parecendo preocupado veio me perguntar como eu estava e tudo mais.
-Acordou agora Luiz? A noite foi boa hein.
-Não foge da minha pergunta Guilherme, onde você tá? Daqui a pouco a tia me liga e eu não sei o que tu tá fazendo.
-Esquenta não véi, tô de boas. Vou embora daqui a pouco.
-De boas onde? Com quem tu tá transando?
-Virou minha mãe agora? Direitos iguais então, quem foi que tu comeu lá nas pedras?
-É coisa minha.
-Ah é? Deixa só a mina saber então. Quero ver até onde vai essa pose.
-Virou X9 agora? Tô só preocupado com você.
-Eu também.
-Outra que eu tava pegando uma mina e você viu ela. Eu não sei quem são os macho que você tá pegando.
-Eu espero que essa sua boca grande esteja falando longe daquele povo... senão eu tô fodido e vou te matar.
-Relaxa, tem ninguém aqui não. Velho, se cuida. Me dá notícias.
-Podeixá, irmão. Você também.
Desligamos.
-Parece que alguém está preocupado com você. Tá na hora de ir? -perguntou Rafael.
-Era o meu amigo de ontem. Tá de boas, a menos que você queira que eu vá.
-Para de besteira. -sorriu. - Vem ver como a sua lasanha ficou. Se ficar ruim a culpa é sua.
-Por quê? Você que fez quase tudo!
-Por que você me desconcentrou a maior parte do tempo.
-Que cantada barata.
-O quê? Me senti ofendido.
- Eu só falei a verdade.
-Ah é? -chegou perto de mim me pressionando contra a parede- Fala agora na minha cara que eu faço cantada barata pra te beijar.
- Você não precisa disso.
Sorriu e colamos nossos lábios outra vez. Era incrível como nossas bocas de encaixavam perfeitamente. O gosto, o jeito, a condução... beijar ele era saber que eu me renderia sem nem discutir.
-Se o nosso almoço queimar a culpa foi sua.
-É tudo culpa minha nessa casa?
-Não. Só o que me deixa desnorteado.
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A noite começava a tomar o lugar do dia quando entramos no carro dele para irmos para casa. Minha cabeça raciocinava mil e uma desculpas para minha explicar meu sumiço a minha mãe. Meu parceiro se divertia com o estado atual que eu passava. Vagabundo. Eu estava realmente feliz pelo dia que tínhamos passado. Era isso. Tinha sido perfeito. Inclusive a lasanha de cair os queixos, meu Deus, pena que não pude levar pra casa.
No caminho para casa fomos conversando sobre projetos futuros. Os meus planos, é claro. Se tinha uma palavra que resumia Rafael era incógnita. Não sabia se o veria amanhã. Se teria notícias dele semana que vem. Se nos veríamos outra vez.
-Ah cara, daqui quinze dias sai o resultado da facul. Eu não queria ficar me pressionando, mas tu sabe que pobre só tem uma chance, né? Se não for agora eu vou ter que meter as caras no mercado e deixar me escravizarem.
-Fala assim não, véi. Pensamento positivo. Vai dar tudo certo.
-Eu sou muito pé no chão.
-Você tá sendo pessimista, é diferente. As coisas vão dar certo. Você fez sua parte. Ralou o ano todo e fez sua prova, agora é esperar e partir pro abraço.
-Tomara.
-Se tu passar, a gente vai comemorar o carnaval lá no Sambódromo.
Depois dessa frase duas coisas ficaram na minha mente. A primeira, depois de um mês de conversa era a primeira vez que via Rafael fazendo algum plano. Certo que tinha aquele dia do cinema que fomos, mas esse momento pareceu ser algo maior. Imagina, o carnaval era dali a quase dois meses e ele tinha uma vida para gerenciar. Uma vida nada fácil, convenhamos. Seria um sonho ir na Sapucaí, assistir o desfile deslumbrante que acontecia todo ano. É o que dizem, existem algumas coisas na cidade que não são permitidas para todas as pessoas. Nem lembro com que idade eu fui na praia pela primeira vez, mas eu era moleque já. Ainda não sei onde ficam o museu e a biblioteca e acho que nem me deixariam entrar lá. Eu não tenho dinheiro nem pro ônibus, imagina ir no teatro; só quando a galera arma algum aqui na favela. Estádio só vou por causa da organizada, mesmo assim é escondido de mãe. A gente tem direito nem a escola de qualidade, imagina ter entretenimento, só se for correr de bala perdida da polícia, pelo menos é o que esse povo do asfalto acha.
Outra coisa que essa frase me fez pensar foi no medo. Era uma promessa. Igual a que ele tinha feito dias atrás. O carnaval seria daqui a dois meses e nem sei se o veria novamente, era melhor não ficar com aquilo na cabeça, seguir a vida e deixar as coisas acontecerem para não sofrer antecipadamente ou futuramente mesmo.
-Isso se a gente ainda se falar daqui dois meses. -escapou.
Suspirou. Estacionou no canto da rua. Virou-se e me encarou. O silêncio foi a resposta. Eu não o olhava, mas sentia seu olhar em mim. Sentia que ele queria falar algo, porém não podia. Ele não estava errado em falar. Mas eu também não estava em ter medo.
-Nem entrou na faculdade e já tá deixando a galera da favela pra trás? -brincou.
-Você sabe que não é disso que tô falando.
-E você sabe que eu não vou deixar de falar com você.
-Eu só tô inseguro. Desculpa.
-Eu também tô.
Pegou em meu queixo e me deu um beijo calmo.
-Só vamos com calma e ver no que vai dar, tá bom?
Concordei com a cabeça. Seguimos pra casa e antes de sair ele me deu um abraço bem forte. Talvez fosse a confirmação de que ele estava tentando. Talvez fosse o necessário, deixar acontecer.
-Falo contigo quando puder, tá bom?
-Tudo bem.
-Me diz se cumpri a promessa de ontem.
-Qual?
-A sua melhor noite.
-Quando você aparecer pra me ver dormir eu respondo. -disse rindo.
-Eu virei.
-Eu sei.

Rascunho (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora