Capítulo 2 - Antes

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Não há ninguém em casa, é a primeira coisa que percebo quando desço as escadas. Pulo de três em três degraus — minhas pernas são grandes o suficiente e já não corro mais o risco de torcer meu tornozelo — para adiantar o processo. Se eu demorar mais que trinta minutos a professora de espanhol não vai me deixar fazer a prova. A casa tem cheirinho doce do aromatizante de vanilla, que minha mãe sempre compra quando vai a Dover. Paro antes de pular para o quinto degrau. A casa está limpa. Há algo errado, a casa nunca acorda limpa.

— Mãe? —Chamo, descendo devagar o resto da escada.

Não há resposta, mas as almofadas coloridas estão organizadas, uma ao lado da outra, no sofá. Alguém também aspirou os farelos de Doritos, que derramei ontem no carpete. E esse alguém não foi minha mãe. Ela que raramente cuida da casa; e também não pode ter sido Shawn, meu padrasto. Ele não tem coragem de colocar o próprio prato na lava-louças.

Ouço o bater de pratos na cozinha e meu corpo todo se arrepia. Prendo a respiração e sigo andando devagar. Bem, talvez ela tenha acordado de bom humor e resolvido fazer panquecas para nós duas. Panquecas com mel. Só de pensar meu estômago revira de fome. Algo de vidro se estilhaça no chão. Não há nada com que eu possa me defender. Minha mochila está no armário de casacos, no hall de entrada. Vamos, Erin, só mais alguns passos. Com o coração acelerado corro até a porta da cozinha. Quem quer que seja não há para onde correr. A porta dos fundos está aberta e o chão está cheio pedaços de copo.

E lá está ele. Jerry, o gato da vizinha. Bebendo água direto da torneira, como se tivesse o direito de fazer isso. Sinto vontade de esgana-lo. Gato maldito. Olho ao redor e vejo que a cozinha está limpa também. Faço um bico porque também não têm panquecas, nem mel, nem qualquer outra coisa que possa matar minha fome. Vou até a geladeira e a encontro vazia. O gato para de lamber a torneira e passa a me encarar com seus olhos amarelos. Miserável.

— Não me olhe assim — digo abrindo e fechando os armários também vazios — também estou com fome.

Muito bem, casa limpa; porta dos fundos aberta; ninguém em casa. Não é bom sinal. Coloco o gato para fora e tranco a porta.

— Ô, Mãe! — grito mais uma vez — cadê a comida dessa casa?

Sem resposta.

Pego os pedaços maiores de vidro e coloco em cima do balcão. Limpo quando chegar. Isso se alguém não limpar antes, o que eu acho difícil. Mas eu ainda preciso comer. Sei que vou chegar atrasada. Na verdade, já estou atrasada. O que significa um grande sermão sobre pontualidade e responsabilidade da sra. Tate. Imaginar todo o blá blá blá de diretora preocupada faz meu estômago revirar ainda mais. Acho que vou ter que dizer a ela que minha mãe quer me matar de fome, ou que ela foi sequestrada por alguém que levou toda a comida. Dou risada sozinha, a caminho do seu quarto. Assim tudo passa a fazer sentido. O indivíduo queria comida e minha mãe não deixou que ele levasse. Ou ao contrário, quem sabe. Vai ver o sequestrador sentiu fome. Só espero que ela apareça antes do jantar porque Shawn sempre chega faminto do trabalho e eu não ando muito afim de cozinhar para ele.

A porta do quarto está escancarada e a luz está acesa. Isso não seria um problema em outro lugar, mas isso deixa minha mãe incomodada e consequentemente, a mim também. Tudo que se abre, fecha. Tudo que se acende precisa se apagar. Cadê a minha mãe?

O guarda roupa está aberto. Mas apenas as suas roupas desaparecera. Não pode ser, ninguém sequestra alguém e leva as roupas junto. Sento na cama tentando analisar as opções. Hoje ela pode ter acordado de bom humor; limpado a casa e levado toda a roupa à lavanderia. Faz sentido, porque nessa época do ano o tecido começa a ficar com cheiro de mofo. Se bem que ela poderia ter levado as minhas e as de Shawn. As dele sim precisam ser lavadas, ele soa demais e eu tenho preguiça de esfregar suas camisas antes de jogar na máquina de lavar. Mas também não faz sentido ela levar todas as roupas, até as mais delicadas e fáceis de lavar, para lavanderia. Ei, nós temos água e sabão aqui também. Ela mesma sabe onde se guarda essas coisas, ela gosta de trabalhar no porão. É o mínimo que poderia fazer.

Vou até sua cômoda procurar algum dinheiro para o almoço, já que não achei nada o que comer. Puxo uma gaveta de cada vez, e como os armários da cozinha, a geladeira e guarda roupas, estão todas vazias. Mas ela também pode ter ido a Dover fazer compras. Definitivamente, ela acordou de bom humor, arrumou a casa, foi fazer compras e de lá deixou as roupas na lavanderia. Talvez ela tenha conseguido um emprego novo e precisa mudar o visual. Mas não justifica levar as joias e deixar as portas abertas. Sento na cama mais uma vez e enterro minha cabeça nos joelhos. Nada, nada justifica a casa ter sido limpa. Limpar a casa é minha obrigação, e eu sempre faço depois da escola. E depois, antes de dormir a sala sempre está bagunçada de novo. Pego o celular do bolso de trás do jeans e começo a discar o número da polícia. Não, espera! Talvez Shawn possa me dizer alguma coisa. Disco seu número que acaba caindo na caixa postal. Claro, Erin, ele está trabalhando. Queria o quê?

— Erin! — ouço alguém atrás de mim gritar e levanto assustada.

Gwen está parada na soleira da porta de braços cruzados, o cabelo escuro preso em um rabo de cavalo bem alto.

— Cara, estou te chamando há horas, por que não responde?

— Ah, eu não ouvi. Por onde você entrou? — Pergunto, guardando o celular no bolso. Nós estamos atrasadas, mas fico feliz por saber que não estou sozinha

— Pela porta que você deixou escancarada — ela senta ao meu lado e toma o celular da minha mão — estava falando com quem para ficar com essa cara?

— M-minha mãe. — pego o celular de volta e guardo no bolso

— Ah, está bem então. Não precisa me morder.

Nós ficamos em silêncio por um instante. Eu até sinto vontade de falar com ela sobre tudo, mas tenho medo de, sei lá, dela rir da minha cara, dizer que estou sendo infantil e que minha mãe vai voltar logo antes do jantar. Talvez ela volte. Não, ela vai voltar porque não vou preparar o jantar para ninguém. Na verdade, não tem nem com o que preparar alguma coisa. Eu teria que comprar. Nesse caso, eu teria que ter grana também.

— Então, vamos? Tenho um álibi para o nosso atraso — Gwen quebra o silêncio, já indo em direção a porta.

— Qual? — pergunto enquanto pego a mochila e o meu casaco.

— Eu fui ao ginecologista e você foi comigo porque minha mãe pediu. Para ter certeza de que eu não fugi, sabe? — ela ri jogando a cabeça para trás, como se fosse a coisa mais engraçada do mundo.

— Nós fomos? — pergunto enquanto amarro o cadarço do tênis.

— Eu fui sozinha semana passada, mas eu guardei o bilhete assinado por ela. Já te falei, Erin, é sempre bom ter um álibi. E além do mais, é só colocar a data de hoje.

— Eu não sei não.

— Qual é, Erin, a gente precisa disso. Nós sabemos que nenhuma das duas conseguem chegar cedo na aula de espanhol. Ou você esqueceu do filme de ontem?

Uma das coisas que me faz não odiar Gwen. Ela sempre tem uma justificativa; uma meia verdade ou até uma mentira. Com o tempo fui aprendendo com ela. Seja sempre convincente, Erin, talvez um dia você precise.

— Vou ser como você quando crescer. — dou mais uma volta na chave, para ter certeza de que a porta não vai se abrir do nada.

— Você já é como eu. Mentirosa.

Nós andamos pela calçada, sem pressa. Não tem motivos para correr, todos acreditaram. Somos apenas nós duas. Nós iremos chegar na escola, entrar no quinto período sem a menor dificuldade. Nós temos um álibi e um teste de espanhol para fazer.

— Erin? — ela fala após passarmos pelo portão da escola

— Oi.

— Sua mãe limpou mesmo a casa?

— Yeah. — chuto uma pedra do meio do caminho.

— Está acontecendo alguma coisa?

— Não.

Eu sabia! Há algo de errado. Até Gwen percebeu. Eu realmente espero que nós estejamos erradas. Espero que minha mãe tenha um álibi, que seja bem convincente, de preferência.

— Ela só acordou de bom humor.

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