— Abraham, por favor, calce seu sapato.
A voz de Gwen me desperta. Suas palavras passam por mim como agulhas afiadas, perfurando minha pele, mantendo-me alerta. Encosto a testa na parede fria, para tentar me manter acordada. É um daqueles dias de outono em que é bonito permanecer acordado, mas está cada vez mais impossível manter os olhos abertos.
— Abraham, querido, amarre logo o cadarço. Isso, muito bem. Estou muito orgulhosa, agora vamos, pegue sua bicicleta para não chegarmos atrasados. — Gwen tranca a porta da frente e segura a mão do irmãozinho, puxando para fora da varanda. Ao descer o primeiro degrau, para e vira-se para mim. Ela está radiante, desde o cabelo castanho escuro, preso em um rabo de cavalo meio torto, às bochechas coradas, pelo esforço de fazer tudo com pressa para não se atrasar.
— Erin, você não vem? — pergunta, ajeitando a minha echarpe azul, em volta do seu pescoço.
— Claro — esfrego os olhos e cambaleio em sua direção.
Eu estou um caco, eu sei. Não deu muito tempo de pentear o cabelo direito, nem de passar alguma coisa que escondesse as olheiras. Passar a noite toda em claro, deitada no sofá esperando, não ajudou em nada. Minha mãe não apareceu. E apesar de ter sentido um pouco de medo da reação de Shawn, não fui capaz de me trancar no quarto e permanecer segura embaixo do cobertor. Ela tinha que voltar, certo? Mães sempre voltam no final do dia. Bem, pelo menos deveriam.
Seguimos em silêncio pela calçada, enquanto Abraham pedala devagar a nossa frente. Ele só tem seis anos, porém, é mais esperto do que deveria ser. Eu me lembro do dia em que nasceu. O tempo passou tão rápido que algumas coisas mudaram sem que eu percebesse. Bebês crescem, mães vão embora. Pois é, Erin, é o ciclo da vida.
Sem perceber tropeço em alguma coisa, e tenho que me segurar no braço de Gwen, fazendo-a cair também.
— Muito bem, Erin! Vou ter que puxar conversa com você agora, para ver se você acorda e olha onde pisa. — ela limpa a poeira das mãos, batendo-as uma na outra.
— Mas eu estou acordada — replico, levantando-me do chão.
Gwen revira os olhos. Ela não poderia ser um pouco mais gentil?
— Sei. Você teve esse azar hoje. A gente poderia estar indo na lata velha do meu irmão, mas a mamãe pediu para leva-la até Washington, e nós temos que ir andando para escola. Com você cochilando e caindo pelos cantos.
— Seth está em D.C.? — pergunto, me sentindo meio boba. É claro que é para D.C., porque se fosse para ir até o outro lado do país ela iria de avião, não em um carro dirigido por um adolescente.
— Eu estou aqui servindo de escrava. Eu já tenho dezesseis anos, poderia muito bem ser eu, saindo dessa cidade tediosa.
— Seth está mesmo em D.C.? Tipo, Washington da costa leste, não Washington de Seatle?
— É, Erin. Washington bem ali. Eu poderia estar lá, na cidade do presidente.
— Mas desde quando você sabe dirigir? — questiono, tentando esquentar as mãos, nos bolsos da frente do jeans.
Bem, pode ter surgido alguma emergência e minha mãe poderia muito bem ter pedido uma carona. Mas por que alguém sairia assim de um jeito tão brusco? Passo a mão pelo rosto, tentando desembaraçar os pensamentos. Mas como, se eu não consigo nem ficar acordada?
— Mas desde quando você está tão interessada no meu irmão? — retruca ela, correndo atrás do irmão mais novo, que caiu da bicicleta. — Viu, querido, é isso o que acontece quando você me desobedece. Eu te disse para não ter pressa, já que não tem nenhum E.T. que te faça voar.
Deixo o riso escapar sem que o garoto veja. Ele é muito novo para entender a referência. Aposto que ele seria ainda mais inteligente se assistisse clássicos em que aliens voam em bicicletas* ao invés de Peppa Pig.
Seguimos o caminho em silêncio, com Abraham empurrando a bicicleta devagar. Já não é tão difícil manter os olhos abertos com vento gelado e os comentários ácidos que Gwen solta a cada minuto. Eles me distraem do meu probleminha doméstico. Eu poderia andar horas e horas ao lado de Gwen; só ela me faz esquecer de que minha mãe evaporou e que não fiz a última lista de exercícios de álgebra.
Logo passamos pela rua da escola, mas antes Gwen tem que deixar o irmão na escola primária, que fica à duas quadras da nossa. Há uma movimentação anormal. Não é apenas o típico monte de gente morrendo de sono de cada dia. Há uma viatura estacionada perto do portão, e o vice-diretor conversa com alguns policiais.
— Encontraram a maconha do clube de teatro de novo? — digo a primeira coisa que me vem à mente. Claro porque quem mais fumaria tanta maconha quanto eles? Apenas a nossa escola consegue transformar Orgulho e Preconceito em algo tão burlesco.
— Não, Erin. Arrombaram o arquivo da escola. Levaram o arquivo todo de 2009.
Nós caminhamos em silêncio, sem a menor pressa. Se a polícia está investigando, é bem provável que a aula demore para começar.
— Eles fizeram tudo isso essa noite? — pergunto, chutando uma pedra qualquer.
Gwen me dá um tapa no braço e interrompe a caminhada; não sei dizer o porquê de tanta irritação. Tento me lembrar se eu disse alguma coisa de errado, mas não consigo. Eu só quero dormir.
— Erin, qual é o seu problema? Nós estamos na terça e eles fizeram tudo no domingo; ontem a única coisa que se falava era disso. Pelo amor de Deus, garota, porque você ainda não acordou? Eu passei o caminho para casa todo falando sobre isso, e pelo que parece você não ouviu uma palavra.
— É mesmo? — é só o que eu consigo dizer sem parecer muito tapada — Mas não foi em 2009 o último ano em que a tia Marla trabalhou como secretária?
— Uhum...
— Nós temos uma tia Marla, Gwen? — Pergunta Abraham, quase acompanhando nosso ritmo.
— Noop. Ela era tia da Erin, mas a gente a considerava também.
— E por que eu não conheço ela? — ele insiste.
— Porque ela teve um infarto fulminante e morreu. Fim. Pronto, agora vai estudar. — Gwen tenta mudar de assunto, empurrando-o levemente para dentro do portão.
— E como que alguém se morre? — o garotinho teima no assunto.
— A pessoa vai embora e não volta mais. — respondo desanimada.
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DeBrassio
FanficErin desconfia, mas não sabe a verdade completa que assombra sua vida comum. Quando sua mãe desaparece, a garota é exposta a uma realidade assustadora. Ela precisa de respostas e apenas Raymond Reddington pode responde-las.