Capítulo 3 - Agora

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Me sinto melhor. Estou suando. Isso é bom, é claro. Sinal de que a febre já deve estar indo embora, provavelmente. Depois de colocar o que tinha no estômago para fora, é bom que a situação tenha mudado. Mas analisando os sintomas, trancada nessa sala escura, não é difícil pensar que seja algo mais grave. Febre alta, vômito; se acrescentar manchas vermelhas na pele poderia ser dengue, ou outra doença infectocontagiosa e mortal. Também pode ser uma simples intoxicação alimentar provocada por uma pizza estragada. Duas últimas fatias cheias de queijo mofado, minha última alternativa. Mas eu preferiria ter comido minhocas. Mas se por algum acaso meu nariz começar a sangrar.... Bem, se levar em conta com o que dizem na tv eles podem me isolar e ninguém vai me machucar. Ninguém quer contrair ebola. Oh, céus, que plano horroroso.
Ele foi embora. Com seu terno preto, a expressão cansada e os sapatos sujos de vômito. Não o culpo, não deve ser um trabalho fácil. Acordar cedo, trabalhar em um prédio velho. Talvez tenha desejado ser astronauta. Gwen queria ser astronauta, na quinta série. E eu? O que eu queria ser, mesmo? Não consigo me lembrar. E tenho que ser outra pessoa. Porque Erin DeBrassio não saberia o que está fazendo agora. Erin DeBrassio teria estudado para prova de cálculo e estaria respondendo as questões esforçadamente. Não presa em uma sala estreita, sendo vigiada pelas câmeras do FBI. Tenho que ser Mary-Kate agora. E tenho que pensar em um sobrenome porque eu tenho certeza de que se eu disser Olsen, eles não vão acreditar. Eu não acreditaria.
Minhas costas ainda doem e também não consigo me lembrar do nome na identidade. Eles a pegaram e agora não me lembro do sobrenome. Johansson? Parabéns, eu sou um gênio. Eu tinha um plano, e não me lembro. E não consigo pensar direito porque essa porcaria de sala é abafada e minhas mão estão algemadas. Eu deveria ter esperado mais duas semanas. Meses, talvez. E também correria o risco de morrer de fome, de frio, espancada até a morte. Encosto a testa na mesa, assumindo minha vergonha.
Eu tinha um plano. E não me lembro dele. Não posso nem usar minhas mãos. Então, a porta é aberta. E seus saltos grossos a denunciam. Justamente quem eu achei que mandariam. Elizabeth Keen. Sim, eu sei o suficiente. Mas ela não sabe quem eu sou, o que é algo bom, vendo que nem eu mesma tenho essa informação no momento. Ela puxa a cadeira depois se senta. Não vou encara-la agora. Não até pensar em alguma coisa. E se ele não souber de nada? É um erro, mas também não posso me levantar e ir embora. Levanto a cabeça e escondo as mãos embaixo da mesa, ela não pode perceber que estou tremendo e também não pode ver meu sobrenome escrito — com a letra desleixada de Gwen — na manga do moletom. Seus olhos me analisam, procurando algo que me entregue. Querida, não há nada — pelo menos não agora, não enquanto meus segredos estão sob a mesa — que possa me entregar. Eu não tenho um histórico criminoso. Eu sou apenas uma garota normal de dezesseis anos. Uma garota normal de dezesseis anos que sabe demais. Muito bem. Eu consigo.
— Qual é a sua ligação com Raymond Reddington? — sua voz é amável, porém, muito precisa. Ela sabe onde quer chegar.
Não respondo de imediato. Não vale a pena. Eu sei que por trás de alguma dessas paredes há alguém me encarando. Como se não bastasse as câmeras. Então tudo o que eu disser vai ser analisado não só por ela, mas por mais gente que deveria estar prendendo mafiosos por aí. Ela é como Jerry, o gato. Estuda a presa com cuidado. Seus olhos de um azul pálido, esperando até que eu esteja confortável e imóvel para atacar; e então despedaçar Mary-Kate, a camada que me impede de falar. Ela é o martelo tentando romper o vidro. Porém, nem sempre Jerry consegue o que quer, e Elizabeth Keen não vai conseguir dessa vez. Algumas camadas se fortificam com o atrito.
— Eu sou tão importante assim? — Pergunto, esboçando o meu melhor sorriso presunçoso — digo, você é tão importante, e não te mandariam se eu fosse qualquer coisa.
Mary-Kate Stone. Essa sou eu, porque não se pode quebrar uma pedra com um martelo.
— Quem te forneceu nossa localização?
— Ninguém — respondo.
Uma onda de frustração me invade. Do que adianta eu ser outra pessoa se essa outra pessoa também não tem argumentos? Eu não deveria ter atravessado a rua. Não deveria ter saído de Dover. Minha mãe não deveria ter sumido de casa.
— Não podemos te ajudar se você não nos ajudar.
Ah, é?
— O senhor Keen disse que me ajudaria.
— O que? Você falou com o Tom? — Pergunta, cheia de surpresa. Talvez eu esteja no caminho certo.
— É. Olha, agente Keen, eu fui na sua casa e a vizinha me disse que você não morava mais lá; então eu te vi no noticiário e...
— Você esteve me perseguindo?
Talvez Mary-Kate não seja tão inútil assim. Ela deixa Elizabeth curiosa. Eu acho isso bom, porque não vejo outra maneira de fazê-la perceber o quanto é importante.
— Não. Acho que procurando é a palavra certa.
E sem dizer mais nada ela se levanta. Não, não pode ir assim. Me levanto bruscamente e seguro seu braço com as duas mãos. A inclinação no meu antebraço direito é sutil, mas o suficiente para que ela consiga ler o que está escrito na parte inferior da manga. Em questão de segundos, retorno ao meu lugar.
— Não deixem que eles me levem para um assistente social — deixo o desespero tomar conta de mim — diga ao meu pai que preciso falar com ele.
Eu quero poder dizer mais; falar de toda a papelada que encontrei atrás da lavadora de roupas, e das fotos suas em um envelope, em cima da bancada da cozinha. É só abrir a boca e falar. Só que não consigo pensar em um jeito que não me faça parecer uma criminosa.
Então, do mesmo jeito barulhento que entrou, Elizabeth Keen sai, me deixando mais uma vez sozinha. Me pergunto se ela vai contar aos seus superiores o que viu. A última coisa que eu quero é ser identificada pela polícia. Só Deus sabe o que poderia acontecer.
Fecho os olhos e tento pedir que — pelo menos uma única vez — as coisas aconteçam da maneira como planejei. É preciso de um tremendo esforço para continuar acreditando que há alguém olhando por mim. Na igreja eu costumava ouvir histórias sobre o cuidado de Deus nas horas mais difíceis. Se ele abriu o Mar Vermelho para os hebreus, porque não pode fazer com que a agente Keen me leve até Raymond Reddington?

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