Capítulo 17 - Agora

47 6 0
                                    

Abro e fecho enquanto seguimos pelos quartos. Não consigo respirar sem sentir dor. Sei que em breve chegarão as sirenes, mais gente de uniforme que me perguntarão o que acabou de acontecer; justamente que estou tentando entender. Vejo as coisas passarem mais rápidas que deveria. Estamos em um corredor — bebendo água de uma garrafinha de um carrinho de serviço de quarto abandonado — Depois já estou em pé no canto uma cafeteria. Uma estação de trem; no banheiro, lavando meu rosto, estou coberta de cinzas.

Não consigo escutar o mundo de fora direito, acho que vou cair a cada passo; tudo o que há ecoando na minha cabeça é uma música velha. A viagem é um borrão e não consigo focar no que se passa ao redor. Estamos caminhando lado a lado — não nos falamos muito para não criar suspeitas. Acho que estou sangrando em algum lugar. Seguimos andando pela calçada, cabeças baixas no meio da multidão. Não consigo perguntar para aonde vamos. Vez ou outra o pego os seus olhos pálidos me examinando, mas quando os nossos olhos se encontram não há respostas.

Encosto em uma parede, estamos frente a frente. Ele não parece muito forte, e não é frágil como eu. Mas nós conseguimos, não é? Eu deveria perguntar seu nome, mas não o faço. Tenho que encará-lo. Não posso desviar meus olhos para o nada, não posso fechar os olhos por mais de um segundo. Logo aparecem as chamas, os corpos e o vazio. Tento memorizar seus traços para que da próxima vez em que meus olhos se fecharem a sua imagem esteja presa embaixo das minhas pálpebras. Logo não haverá explosões. Não há sorriso no seu rosto anguloso. Ele é vagamente familiar, no entanto não importa. Ele está me salvando, não é? Acho que está sendo meu herói por enquanto. Fico alerta quando a sua boca começa a se abrir. Me surpreendo por conseguir escutá-lo; sua voz um pouco anasalada, meio rouca, irrita um pouco meus ouvidos sensíveis.

— Sente-se aí — diz ele — Tente não desmaiar aqui. Vista o moletom.

Ele aponta para o moletom no meu colo. Está meio chamuscado. A ultima parte de mim. Pego a manga e encaro meu nome escrito em letras pequenas. A letra da Gwen. Que me odeia agora. Depois olho para os meus braços, e de fato estão feridos. Eu não tinha notado os pequenos cortes espalhados pelo meu corpo. A explosão. Meu Deus, então ela realmente aconteceu. Dou de ombros e começo a vesti-lo. Ele me ajuda com as mãos frias. Não desvio o olhar. Quero me esconder nos seus olhos azuis, não me lembrar da explosão; Marta se desintegrando em pedacinhos, o as cortinas pegando fogo. Não quero lembrar, não quero. Enfim me sento no banco de madeira e desvio um pouco os olhos. Outra coisa tão familiar. Pessoas saindo e entrando de um prédio do outro lado da rua. Há uma ambulância estacionando, logo vejo paramédicos também. É impressão minha ou ele parece desconfortável. Percebo que ele olha discretamente para trás e consigo enxergar um grande alerta esculpido em seu rosto.

— Eu não vou poder entrar com você. — diz ele, enfim sentando-se ao meu lado.

Estremeço com a ausência do seu rosto para analisar, mas não consigo me virar. Levo os olhos para o prédio, procurando cada detalhe. O nome está escrito em letras bem grossas no alto da marquise. Letras azuis. É, eu realmente acho que já estive aqui. Me sinto desconfortável ao perceber que bem de longe algumas pessoas nos encaram. A cerca viva em alguns pontos. Há flores também. Há um estalo também, só que dentro da minha cabeça. Eu já estive aqui. Viro bruscamente para encará-lo, com olhos arregalados. Como eu vim parar aqui? Mais uma vez. Ai droga, por que ele me trouxe aqui? Ele limpa a garganta, quebrando o silencio.

— Mas você tem que entrar mesmo assim. — continua — eu vou voltar depois, mas agora é com você.

Tento mexer minha língua de papel; para pedir para não me deixar aqui, mas nada sai da minha boca seca. E nada o impede de levantar e ir embora sem se despedir. Sacudo a cabeça para afastar a explosão e a música velha na minha mente. Meu corpo se curva sem que eu mande. Logo estou no chão e o mundo fica vermelho outra vez. E então, como se estivessem esperando como abutres, eles correm até mim. Eu sei que estão vindo. Posso escutar seus passos.

DeBrassioOnde histórias criam vida. Descubra agora