XVIV

75 4 1
                                    


29 dias.

Eu não havia parado para contar ainda. Tive que fazê-lo para iniciar minhas palavras com a frase mais clichê de qualquer grupo de apoio.

29 dias limpa.

Mais um dia e eu ganharia minha primeira estrelinha de "mêsversário". Há tantos olhos me observando nesse momento que sinto minhas mãos apertarem as laterais da cadeira a qual estou sentada, nervosa.

Hoje fazíamos um grande círculo de cadeiras no meio da sala e foram convidados, a quem se sentisse à vontade, contar um pouco de sua trajetória até ali. Eu havia decidido havia alguns dias que já era hora de falar alguma coisa.

29 dias.

29 dias limpa.

29 dias enfrentando meus monstros sozinha.

Sentada de costas para a porta de saída, eu levantei timidamente minha mão quando perguntado se alguém ali gostaria de contar um pouco sobre sua história. Ciente de minha intenção o coordenador da reunião me lançou um pequeno sorriso encorajador para que eu iniciasse.

- Meu nome é Anis tenho 24 anos e estou a 29 dias limpa. Todos os dias repito a mim mesma que é só mais um dia. - Paro um segundo e respiro fundo tentando afastar as lágrimas. - É muito complicado para mim admitir que o álcool não me trás nada de bom, por mais que eu queira acreditar que sim. É difícil pra mim encarar meus sentimentos e meus monstros de cara limpa.

Seguro forte nas laterais da cadeira tentando conter a vontade de fugir dali o mais rápido possível. Balanço as pés freneticamente em claro sinal de ansiedade.

- Foi assim que ele acabou entrando na minha vida, para afastar meus medos, minhas frustrações e meus erros. Bebo desde a adolescência e perdi a conta das vezes que acordei na sarjeta ou em cama de desconhecidos. Sempre sem saber como havia parado lá ou o que havia acontecido comigo nas horas anteriores. Foram alguns anos assim e o fundo do poço foi quando me vi sem família, sem casa, sem emprego e sem amigos. - Sinto Rachael desviar o olhar. - Eu saí de casa jovem por que meus pais não aguentavam mais me ver daquela forma e eu achava que não havia problema nenhum comigo, eu só gostava de beber e me divertir que mal há nisso? Já morei na rua e fui agredida, tive uma fratura no braço direito e várias luxações pelo corpo. - As lágrimas rolam novamente.- Minha irmã passava por mim na rua e fingia que não me conhecia. Não falo com meus pais a 3 anos. Sinto tanto a falta deles, mas ainda não tive coragem de voltar. Não depois que eles tentaram me internar e eu fugi da clínica de reabilitação . Eles gastaram suas últimas economias para me colocarem lá e eu simplesmente dei as costas a eles. Eu escolhi o álcool ao invés da minha família.

Paro novamente e olho para o teto buscando coragem para continuar.

- Finalmente depois de tudo eu decidi que tinha que acabar. - Um soluço escapa por minha garganta nesse momento e choro. Dona Maria que estava sentada a meu lado coloca a mão em meu ombro me incentivando a continuar, aguardo o desespero passar e continuo. - Eu queria que a dor acabasse, que a fissura acabasse. Minha vida tinha que acabar, eu simplesmente não aguentava mais. Eu estava lutando contra a sede a tanto tempo que já não tinha mais forças. Foi aí que um anjo apareceu. E me tirou de lá. Estamos trabalhando juntos nisso a mais de um mês. Não tem sido fácil. Hoje o médico nos disse que a morte estava mais próxima do que eu imaginava. E eu tive medo. Incrivelmente a pessoa que procurava a morte hoje tem medo dela. Mesmo que eu não mereça viver ou mesmo não mereça mais uma chance, eu quero. Eu quero uma vida normal eu quero sentir o mundo a minha volta, não estar dormente o tempo todo. Não sei se há mais tempo pra mim, estou tentando a cada dia, mesmo quando minha mão treme ao carregar a bandeja no restaurante em que trabalho, mesmo quando choro no banho pra ninguém ouvir, mesmo quando me obrigo a levantar pela manhã todos os dias, mesmo que meu corpo implore por bebida, mesmo assim eu tento desesperadamente.

Faço uma pausa para conseguir respirar e secar um pouco as lagrimas.

- Não quero sentir a rejeição novamente. - Continuo. - Dói tanto ver as pessoas que você ama te dando as costas. Esse anjo desconhecido que me tirou da ponte que eu pretendia me jogar. - Sorrio ao lembrar de John. - Ele acredita em mim e em minha recuperação e não quero sob hipótese alguma desapontá-lo, ele me resgatou literalmente e acredito que John não vá se arrepender, eu não quero que ele se arrependa de mim. - Suspiro profundamente e decido que já falei o suficiente.- Então é isso, não é nada bonito, não é nada redentor nem milagroso. Sou apenas eu lutando só mais um dia contra a sede.

Meus colegas do grupo batem algumas palmas, enquanto o coordenador agradece minha participação. Sinto um pequeno peso sair de sobre meus ombros e a ansiedade se acalmar dentro de mim.

Repetimos os 12 passos juntos e a reunião se dá por encerrada. Dou adeus a alguns conhecidos e quando vou em direção a porta qual a minha surpresa ao ver John apoiado à parede ao lado dela de braços cruzados sobre o peito me esperando. Ele estaria ali a muito tempo? Teria ele ouvido meu desabafo? Ele me dá um sorriso confiante enquanto me aproximo e segura minha mão.

- Eu prometi que viria, não prometi? - Ele diz antes que eu pergunte qualquer coisa.

- Eu quis vir sozinha pra pensar um pouco. - Me justifico. - Desculpe.

Jon se limita a sorrir e me acompanhar para fora dali até o carro.

SEDEOnde histórias criam vida. Descubra agora