"Capítulo VIII" - A verdade

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Na hora marcada. Clara e o senhor William estavam sentados em frente ao jornal, na cafeteria da cidade, cidade fundada em 1703. Também situada ao pé da Serra, desenvolveu-se graças à extração do ouro e plantação de café, que acontecia no topo da serra. Autêntico por sua simplicidade, o lugarejo está situado a 150 km da capital do estado. Agregada numa mesma paisagem de grandes picos, alguns com mais de 2000 metros de altitude, casas coloniais preservadas, ruas de pedras, ruínas de um aqueduto, igrejas coloniais, belas cachoeiras e um aconchegante clima ameno. O conjunto arquitetônico barroco formado pela Igreja da Matriz e por casas antigas ao redor da praça, entre outras construções, traz para o presente a história da pequena e bucólica cidade.

O dono do jornal local não demorou a chegar, ele andava com certa dificuldade devido à idade avançada, mas era dono de uma inteligência fora do comum e de sobriedade além do que possa imaginar, perdendo apenas para alguns gênios da atualidade...

— Boa tarde! Desculpem, mas não sou jovem que corre, ou anda rápido, minha idade me limita aos movimentos lentos.

— Sem problemas, entendemos, disse o Senhor Willian. Eu não sou jovem também. Pediram um café e o dono do jornal podia começar sua narrativa...

"Alguns anos atrás, aliás foram muitos anos atrás, estas terras (apontava para lá fora) tinha muitos negros, que circulavam entre os brancos, fazendo a paisagem ficar alegre e colorida. Para muitos era uma afronta aos brancos que se achavam donos do mundo, para a história uma transgressão à vida. O homem, escravizou seu irmão, desculpe... é que sou espírita.

— Nós também somos. Continue por favor.

— O negro era cativo por sua força de trabalho. Como consequência, o elemento predominante na existência do negro era o trabalho. Nas fazendas de café eram comuns as jornadas de trabalho de quinze a dezoito horas diárias, iniciadas ainda na madrugada, ao som do sino que despertava os escravos para que eles se apresentassem, enfileirados, ao feitor, para receber as tarefas. Se as atividades fossem próximas à sede da fazenda, iam a pé; se mais distantes, um carro de bois os transportava. Distribuíram-se em grupos e trabalharam horas a fio sob as vistas do feitor e embalados pela música que cantavam. Num português misturado com suas línguas maternas, essas canções falavam do trabalho, de suas origens, dos patrões e de si mesmos, num ritmo monótono e constante, repetindo dezenas, centenas de vezes a mesma melodia.

O almoço era servido lá pelas dez horas da manhã. O cardápio constava de feijão, angu de milho, abóbora, farinha de mandioca, eventualmente toucinho ou partes desprezadas do porco e frutas da estação como bananas, laranjas e goiabas. Embora houvesse interesse em manter o negro saudável e apto para o trabalho, não havia a preocupação com sua longevidade. Qualquer que fosse a comida, era preparada em enormes panelas e servida em cuias nas quais os escravos enfiavam as mãos ou, mais raramente, colheres de pau. A refeição deveria ser feita rapidamente, para não perder tempo. Por volta da uma hora da tarde, um café com rapadura era servido - substituído nos dias frios por cachaça - e às quatro horas jantava-se. Aí, comia-se o mesmo que no almoço, descansavam-se alguns minutos e retomava-se o batente até escurecer. Cumpria-se, então, o ritual da manhã, todos se apresentando ao administrador - ou dono, conforme o caso - da fazenda. Era quando, após uma breve oração, iniciava-se o ser que constava, geralmente, da produção ou beneficiamento de bens de consumo. Os escravos debulhavam e moíam o milho, preparavam a farinha de mandioca e o fubá, pilavam e torravam o café. Com frequência, cortavam lenha e selecionavam o café apanhado no período de colheita.

— Senhor, essa história que conta foi passada por famílias que viveram por aqui, como seus familiares.

— Sim, aliás tem um historiador na cidade que levantou tudo, com os mais velhos. Ele faleceu, mas nossa história está viva. Com dificuldade para respirar ele continuou...

— Aqueles escravos, apenas lá pelas nove ou dez horas da noite é que o escravo podia se recolher. Isso para alguém que, no verão, levantava por volta das quatro horas da madrugada. Antes de se deitar, fazia uma refeição rápida e, extenuado, descansava até a jornada do dia seguinte. As ocupações diárias do administrador da fazenda, o tratamento dos escravos, o cuidado com as crianças escravas e igualmente com as plantações, tudo isso é contemplado nessas instruções nos conduzindo a uma leitura preciosa do cotidiano das fazendas cafeeiras.

Nas recompensas e nos castigos o administrador não poderia ser guiado pelo capricho ou parcialidade. Deveria ser o primeiro a se levantar e tocar o sino, com o intervalo de cinco minutos, uma hora antes de nascer o dia. A seguir, deveria formar a escravatura, cada feitor com seu terno, fazendo-se a contagem para saber se todos estavam presentes e castigando aos que faltavam ao chamado. Os que estivessem enfermos seriam recolhidos ao hospital, instalação que passou a existir nas fazendas depois que o preço dos escravos se elevou sobremaneira devido à lei de 1850, que proibia o tráfico intercontinental de cativos.

Mandei servir duas xícaras de café bem torrado a cada escravo, provando antes para ver se estava bem feito e adoçado. É curiosa a preocupação com o açúcar no café dos escravos: o administrador deveria adoçar o café ou a sua vista mandar adoçar. Revistam-se na ocasião os pés dos escravos, examinando se foram lavados na noite anterior, antes de se deitarem. A falta de higiene nos pés era origem de feridas, frieiras e bichos de pé.

Os escravos comiam no almoço, nessas fazendas era às 10h, pois o trabalho se iniciava de madrugada. No almoço comiam feijão cozido e bem temperado com sal, gordura e pimenta acompanhado de angu de milho. O jantar era servido às 14h e consistia em feijão com nacos de carne seca, recomendando-se serem fritas antes em gordura de porco. No feijão era misturada ervas ou couves e a preparação da carne deveria variar, sendo ensopada com abóbora, couve ou outro tipo de legume. A ceia dos escravos, hábito português antes de dormir, deveria ser frugal para evitar indigestões. Davam-se inúmeras opções dessa merenda, tais como: canjica bem cozida de milho branco, bem adoçada, ou mingau de fubá, ou de arroz, ou de mandioca temperada com gordura e abóbora, ou ainda angu com ervas ou outros legumes da estação. A comida deveria ser provada anteriormente pelo administrador. Deveriam receber para o jantar, pelo menos duas vezes na semana, arroz bem preparado com gordura.

Percebe-se que a gordura e o açúcar ganham grande importância na dieta alimentar da escravaria nas fazendas. Recomendava-se servir a alimentação com abundância até o escravo se satisfazer e as sombras lançadas nos cochos dos porcos.

Para as crianças menores de sete anos, pela manhã serviriam café com leite adoçado e acompanhado de um pedaço de rosca ou pão de milho. Às 8h servia-se o almoço: arroz com leite, herança árabe, ou arroz temperado com gordura. Às 11h, uma ou duas bananas, ou laranjas. Às 14h, o jantar com feijão misturado ao arroz e angu de milho, ou pirão de mandioca com um pedaço de carne seca. Na ceia, canjica bem adoçada.

— Delicioso, o café, bebida que ganhou o mundo.

As Reencarnações de ClaraOnde histórias criam vida. Descubra agora