Jantar

16 1 0
                                    


  Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo, estava condenada a viver ali para sempre, presa ao lado de um demônio e temendo fazer qualquer coisa de errado e acabar morta por ele.

  Aquela noite foi uma das piores de minha vida, me senti mais sozinha do que nunca, não havia como ver a luz do sol ou da lua então não era possível saber o horário mas eu já passara muito tempo acordada e sozinha, passei horas deitada naquele colchão. Pensei em Henrique e meu pai, onde quer que  estivessem, pensei também em Margareth, não demoraria muito para que ela se casasse e fosse embora para a cidade. E pela primeira vez pensei em Helena, meu irmão sempre ia visita-la, como ela se sentiria se ele passasse muito tempo fora? Ou até se não voltasse...

    Nunca estivera tão confusa,e se o sumiço de minha família tivesse algo a ver com a aparição do demônio?  Não gostava nem de pensar nesta possibilidade .Depois de um bom tempo pensando senti alguma coisa andando sobre minhas pernas , sentei -me no colchão e vi o gatinho parado em cima de meus joelhos, estiquei  a mão para que ele me cheirasse, ele aproximou o focinho das pontas dos meus dedos , depois de cheira-las esfregou a cabeça na palma de minha mão pedindo carinho, comecei a fazer cafuné na cabeça dele e ele começou a vir cada vez mais perto então desceu do meu colo e se deitou do meu lado, deitei-me junto e pousei a mão sobre sua barriga. Por um momento pensei que ele poderia me fazer mal, mas ele não parecia nem um pouco ameaçador. Ali abraçada com ele consegui dormir.

   Naquela noite sonhei com Henrique e meu pai, os dois gritavam por socorro, o lugar era escuro demais para vê-los  mas sabia que eram eles. Acordei assustada, o gatinho continuava deitado ao meu lado , levantei e fui em direção a abertura da câmara,  Ao chegar na "porta" não tive coragem de sair, era escuro de mais para ver qualquer coisa, as velas acabavam pouco antes de chegar  ali como se estivessem posicionadas de propósito para iluminar apenas a câmara.

   — Você não deve sair  — Ouvi uma voz masculina dizer, por um momento achei ser Keno mas não havia sinal dele, devia ser coisa da minha cabeça.

  Ao voltar para o colchão percebi que haviam roupas para mim ao lado dele, desdobrei e vi que era um vestido preto com mangas compridas e um grande decote, havia também um espartilho roxo com rendas pretas nas barras mas deduzi que seria impossível vesti-lo sozinha.  um pouco mais à frente do colchão estava uma tina de água e uma toalha, como minha única companhia era um gato e eu estava coberta de lama e suor da caminhada montanha à cima, me despi e entrei na água fria. Fiquei um bom tempo de dentro, molhei os cabelos, esfreguei o corpo para tirar a lama, mas sempre olhava para a "porta" para ter certeza de que nada mudara, mas a única coisa que mudava era a posição do gato que estava me observando.

   Depois de um longo tempo no banho, me sequei e coloquei o vestido deixado para mim,  logo depois de terminar de me vestir Keno entrou no "quarto".

    — Como passou a noite ?  — Perguntou ele .

   — Bem, eu acho...  — respondi ainda com medo.

   — Ele não te atrapalhou... certo?  — Ele apontou para o gato.

   — Não, ele se comportou muito bem... até me ajudou a pegar no sono...

   — Para o bem dele é melhor assim.

   —  Ele tem nome?  — Perguntei pegando o gatinho no colo.

  — Não!  — Respondeu com uma voz um tanto enfurecida, pegou o gato de meus braços e jogou de volta no colchão  — Não bajule ele! Ele está aqui para servi-la e não o contrário.

   Não fazia ideia de como um gato poderia me servir, mas também não estava afim de descobrir o que Keno faria se eu o contrariasse. 

    — Vire-se  — Disse ele, eu obedeci, ele me vendou e começou a me guiar  — Vamos, tenho uma surpresa para você .

   Caminhamos um pouco em silêncio, keno estava na minha frente segurando minhas mãos para que eu soubesse onde ir, no meio da caminhada tropecei em uma pedra teria caído se ele não tivesse me segurado. Depois de um tempo ele me fez sentar em algo que parecia ser uma cadeira, comecei a sentir o cheiro da carne assada pouco antes dele tirar minha venda, à minha frente estava uma mesa comprida repleta de frutas, carnes pães, doces  e vinho, Keno se sentou na outra ponta da mesa e ficou me encarando com uma expressão de satisfação.

   — Fique a vontade! Pode comer!

   Fiquei tentada a devorar tudo que estava naquela mesa, estava sem comer a um bom tempo, mas aí me veio uma coisa à memória " Quem preparou esta comida foi um demônio", e no mesmo instante a mão que havia se lançado sobre a mesa para pegar um pedaço de carne voltou ao meu colo e baixei a cabeça.

   — Não vou envenena-la, se é o que pensa ! — Ele ficou muito irritado — Se quisesse te matar já teria feito! — Ele fez uma pausa, respirou fundo e se acalmou — Pode comer, não te farei mal nenhum. — Agora ele falava extremamente calmo , o que me assustou ainda mais, então ele próprio pegou um pedaço de pão e o come.

     — Me desculpe... — Então peguei uma maça que estava próxima e dei uma mordida, nunca havia visto uma maça tão vermelha, doce e suculenta — Nossa, que delícia !

    —  Estas maçãs só crescem aqui, são tão perfeita por que sua árvore fica próxima ao vilarejo das fadas, e elas costumam cuidar bem das plantas... te levarei lá algum dia. — Ele  se levantou, colocou vinho em meu copo e levantou o dele. — Um brinde à minha nova aprendiz.

   Levantei meu copo também e tomamos o vinho, ele me explicou um poco como seria meu aprendizado, mesmo eu tendo medo e não tendo a minima vontade de aprender prestei atenção. Ele me explicou que ser sua serva ou aprendiz não fazia de mim uma bruxa como era nos ensinado na vila, e que as reais bruxas não eram necessariamente más, mas que eram mulheres que serviam a espíritos ou energias da própria natureza e não havia nada de mal nisso. Também me disse que durante meu aprendizado eu teria que servi-lo em tudo, mas que depois de concluído eu poderia usar o que aprendesse para o que eu desejasse, mas que nunca teria uma vida normal na vila, se algum dia eu decidisse voltar a viver fora da montanha teria de procurar um lugar bem afastado. Keno também me contou de uma festa que reunia diversos demônios na noite de lua de sangue, uma noite temida muitas vezes pelos humanos e também a noite em que os demônios ficavam mais fortes, esta tal festa parecia estar chegando, isso me assustou um pouco, se viver com um demônio já era difícil imagina aguentar vários e ainda por cima na noite que estavam mais fortes.

   Passamos um bom tempo rindo, conversando e bebendo. Eu não estava acostumada a beber então comecei a me sentir mal. Keno disse que me levaria para a cama, mas eu estava com tanto sono que cochilei em seu colo no caminho.


Onde HabitaOnde histórias criam vida. Descubra agora