Prólogo

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A casa no final da Sycamore Lane era um sobrado com a janela da frente em formato de meia-lua e as finas cortinas cinzentas sempre fechadas. A varanda vivia cercada de ervas daninhas e, entre as tábuas empenadas do assoalho, a grama brotava. Sobre elas, as telhas estavam quase todas quebradas. Da pintura verde desbotada só sobravam algumas faixas que ainda não estavam totalmente descascadas. Um playground enferrujado continuava de pé no quintal. O escorregador ainda estava inteiro, mas só o que restava dos balanços eram duas correntes arrebentadas. Os assentos de borracha tinham se soltado havia muito tempo e ficavam jogados no chão, ressecando sob o sol. Mas não foi sempre assim naquela casa. É incrível como, de repente, as coisas mudam e os acontecimentos ruins se acumulam. A família que vivia ali foi assombrada pela má sorte, os momentos trágicos chegando sempre antes e com maior intensidade que os mínimos momentos felizes. A vida deles foi interrompida bruscamente no dia em que Carrie Anne – filha mais nova do casal e a única menina – caiu do balanço no quintal. Quando a encontraram, o sangue se acumulava sob sua cabeça, congelando entre as mechas embaraçadas de sua longa cabeleira loira. Os vizinhos logo ficaram sabendo que a coitadinha tinha sofrido dano cerebral. Dali em diante, ela passaria a maior parte do tempo dentro de casa. Seus pais a monitoravam constantemente. Eles controlavam o que ela comia, o que vestia e nunca a deixavam sair do quarto mais do que algumas horas por dia. Começaram a correr boatos de que ela era perigosa. Passaram-se anos antes da segunda grande tragédia. Era uma noite quente e úmida de agosto quando tudo aconteceu, uma década depois do acidente de Carrie Anne. Seus pais estavam dormindo com a janela aberta, pois o ar continuava abafado depois de uma tarde chuvosa. Mary Jacobsen, a mãe de Carrie Anne, acordou ouvindo passos que se aproximavam na escada. Ela demorou alguns segundos para entender se aquilo era real ou se fazia parte de um sonho, até que viu a luz se acender no vão embaixo da porta. John Jacobsen virou-se na cama, percebendo que sua esposa tinha acordado.

– Mas como pode? Essa menina acordou de novo? – ele esbravejou.

Mary esfregou os olhos. – Tudo bem, tudo bem. Pode deixar que eu vou – respondeu num tom áspero.

Os dois já mal se falavam naquela época. Seu casamento tinha ruído depois do acidente, com tudo – cada conversa, cada dia, cada mês – girando em torno de sua filha. O que Carrie Anne ia comer hoje? Qual dos dois ficaria em casa com ela enquanto o outro ia à cidade? Incapazes de se concentrar em outra coisa além da menina, ambos perderam o emprego nos meses seguintes ao acontecido. As dúvidas e arrependimentos os corroíam. E se eles estivessem do lado de fora quando ela caiu? Será que poderiam ter feito alguma coisa? Será que teriam evitado o pior? E por que John não cobriu de areia o chão do playground, como tinha prometido desde o início? Quantas vezes Mary já tinha pedido que ele fizesse isso? Era sempre ela quem consolava Carrie Anne, quando a menina acordava no meio da noite. Era duro ter uma filha que precisava de conforto e atenção em tempo integral. Embora Mary Jacobsen não fosse capaz de admitir em alto e bom som, sabia que tinha se tornado mais dura em relação à filha com o passar do tempo. Seus nervos estavam esgotados, essa era a verdade. Ela acabava perdendo a paciência com a menina mais do que gostaria. Nos últimos meses, a frequência com que ia ao médico atrás de receitas de calmantes era cada vez maior. Então começou a frequentar outros consultórios, desesperada para conseguir mais e mais pílulas – seu suprimento nunca era o bastante. Ela e John discutiam muito mais quando os frascos de remédios estavam perto de acabar. Mary levantou da cama e caminhou devagar em direção à porta do quarto. Sua cabeça estava explodindo graças à combinação de tranquilizantes e pílulas contra a ansiedade. Quando apareceu no corredor, Carrie Anne estava parada, à beira da escada, com os braços para trás, as mãos fora da sua vista. Mary fechou a porta do quarto devagar, sabendo que John iria reclamar caso elas fizessem mais barulho do que já tinham feito.

– Carrie Anne – ela disse, severamente. – Você precisa voltar para a cama. Agora. Você já sabe como isso vai terminar.

Os longos e embaraçados cabelos loiros da menina estavam caídos para frente, escondendo seu rosto. Sua camisola, comprida até a altura dos tornozelos, tinha uma mancha seca na frente. Mais cedo, durante o jantar, ela havia surtado mais uma vez e atirado o prato de comida na parede, derrubando todo o molho da carne sobre o próprio colo. Sua mãe simplesmente não sentiu a menor vontade de limpá-la ou então trocar suas roupas.

– Carrie Anne? – Mary a chamou novamente.

A garota estava com o tronco levemente inclinado para frente e a cabeça baixa. Novamente, ela não esboçou qualquer reação. Mary deu um passo em sua direção, avançando pelo corredor estreito. Simplesmente odiava quando a filha fazia aquilo. Ela reconhecia sua voz. Sabia que era a sua mãe quem estava falando. Por que cargas d’água fingia que não tinha mais ninguém ali? Mary deu mais um passo e alcançou o braço da menina, agarrando seu pulso e puxando com mais força do que pretendia. Foi aí que notou algo diferente de relance. Carrie Anne ergueu a outra mão, revelando, sob a luz fraca do corredor, o martelo que escondia atrás das costas. Por uma fração de segundo seus olhos azuis brilharam, vislumbrando o rosto assustado da mãe, que não teve tempo para fazer mais nada. Com um movimento rápido, Carrie Anne a acertou na cabeça, logo acima dos olhos – e bateu de novo e de novo, até Mary finalmente cair para trás, absolutamente irreconhecível.

No quarto, John se sentou na cama, sentindo que havia algo de errado. Ele tinha escutado as pancadas abafadas e depois o silêncio que se seguiu, mas estava um pouco aéreo por causa dos medicamentos – um coquetel especial que o mantinha relaxado por horas, antes de causar um acesso de paranoia como efeito colateral – por isso ficou ali parado, olhando para a porta, pensando que talvez fosse a sua imaginação que estava pregando mais uma peça. Intrigado, ele esticou o braço e tateou a mesinha de cabeceira atrás do frasco de remédios, mas já não havia nenhum comprimido dentro dele. Sentado na cama, John esperou por alguns segundos, imóvel, apenas observando as sombras que se moviam no vão da porta e imaginando se Mary tinha conseguido convencer Carrie Anne a voltar para a cama. Às vezes, para conter a agitação da menina e forçá-la a dormir, sua esposa tinha que apertá-la com toda força contra o seu peito, imobilizando-a entre seus braços por vários minutos. Outras vezes, os dois eram obrigados a trancá-la no quarto e a ficar escutando seus gritos desesperados por horas e horas, antes que eles começassem a diminuir de intensidade para enfim desaparecerem totalmente. A gritaria era o que John mais detestava. Seu sangue fervia ao som dos berros estridentes e dos socos e pontapés que a garota dava na porta. Parado no quarto, ele continuou observando as sombras no chão. Do lado de fora, trovoava. A chuva tinha começado a cair novamente, molhando as cortinas. John se levantou e deu alguns passos tentando se orientar na escuridão. Estava prestes a chamar o nome da esposa, quando a porta se abriu. Sua filha entrou rapidamente, o cabelo bagunçado na frente do rosto e o martelo sangrento em uma das mãos...

A última casa da ruaOnde histórias criam vida. Descubra agora