Capítulo 11

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Enquanto Elissa estava no andar de cima, Ryan não tirou o dedo do botão de volume do antigo aparelho de som, aumentando e diminuindo, tentando encontrar o volume certo. Carrie Anne estava agitada. Ele conseguia escutá-la lá embaixo e era possível que Elissa também a estivesse ouvindo. Preocupado, ele deixou o som para lá e foi conferir se Elissa tinha fechado a porta do banheiro. Foi quando a viu.

De alguma maneira, Carrie Anne tinha conseguido sair do quarto e se soltar do pé da cama. Ela estava na cozinha, remexendo as gavetas, procurando uma faca.

Elissa ainda estava no andar de cima. Ryan escutou o som da descarga e, depois de alguns segundos, o da porta do banheiro se abrindo. Para sua sorte, agora Carrie Anne estava atrás da divisória na cozinha, fora do campo de visão de quem estivesse na sala. Ela estava agitada, disso ele tinha certeza. Ainda não tinha tomado os sedativos de hoje.

O sofrimento e a confusão eram evidentes no rosto de Elissa, mas ele não teve tempo de explicar nada enquanto a expulsava de casa. Não podia correr o risco de deixá-la ver Carrie Anne, não se perdoaria se algo acontecesse a ela. Quando Ryan trancou a porta lateral, depois de ver Elissa correr para casa cheia de raiva, seu coração estava explodindo dentro do peito. Ele voltou para a sala devagar e aumentou o volume do som para abafar os gritos que Carrie Anne certamente daria. Ao se virar para a cozinha, ele a avistou perto do balcão, com uma faca comprida em uma das mãos. Sem notá-lo, ela correu pela porta da frente e saiu da casa, se lançando na escuridão crescente do pôr do sol.

Ryan deu um último pique e a alcançou, a agarrando pelo pescoço com um dos braços. Carrie Anne tentou acertá-lo com uma facada, mas ele conseguiu segurar sua mão e a apertou e chacoalhou até que ela soltasse a faca. Então os dois caíram no chão, com Ryan por baixo de Carrie Anne. Enquanto ela se debatia, ele tentava imobilizá-la, evitando fazer muito barulho para não chamar atenção. Seu coração quase parou quando escutou a porta de um carro se abrindo e um homem gritando alguma coisa que não conseguiu entender.

Ele segurou Carrie Anne ainda mais forte, impedindo que ela se movesse. Eles não podiam ser descobertos. Ele não podia deixar que a encontrassem. Mais do que nunca, ela tinha que ficar quieta, por mais difícil que isso fosse. Não podia deixar escapar nem um mísero som que fosse. Os dois ficaram daquele jeito por dez minutos, talvez mais, até o corpo de Carrie Anne relaxar completamente sobre o de Ryan. Arrependido, ele se perguntava por que diabos não tinha descido ao quarto subterrâneo mais cedo e aplicado os sedativos na irmã. O que custava ter ido lá e dado alguma atenção a ela, ter checado se estava tudo bem?

Finalmente, o carro estava se afastando do mirante, o barulho do motor diminuindo até desaparecer. Quando a floresta ficou completamente silenciosa, Ryan a soltou. Ao invés de se levantar, entretanto, ela largou o peso em cima dele, deixando os braços caírem em um ângulo esquisito.

– Carrie Anne – ele a chamou, tirando da frente do rosto seus cabelos loiros bagunçados. A pele dela estava pálida e levemente azulada. – Levanta logo, vai... Por favor.

Nenhuma resposta, nenhum movimento. Ryan tentou empurrá-la com os ombros, mas ela não se moveu.

– Carrie Anne – insistiu, respirando com dificuldade, prestes a perder de vez a paciência com a irmã. – Por favor, vai. Você já deu trabalho demais por hoje. Desce logo de cima de mim.

Foi então que Ryan percebeu as marcas avermelhadas e azuis ao redor do pescoço da irmã, bem onde a estava segurando antes. Por quanto tempo será que tinha ficado apertando a garganta dela? Ele só queria mantê-la parada. Não podia deixar que ninguém os descobrisse. Com o coração acelerado, ele levantou a cabeça, tentando escutar a respiração da irmã, mas o ar não estava saindo pela boca nem pelo nariz dela. Ela estava morta. Depois de todo esse tempo, de todo o esforço para mantê-la a salvo – para manter todo mundo a salvo – Carrie Anne estava morta.

Ryan deu um soco no chão com toda a força e bateu de novo e de novo, até as juntas de seus dedos começarem a sangrar. O que tinha acabado de fazer? Ele a tinha matado. Tinha matado sua única irmã. O que seus pais pensariam dele agora? Chorando e soluçando, descontroladamente, Ryan era só arrependimento. O que faria agora?

Cada momento da infância dos dois passou pela sua cabeça em uma fração de segundo. A primeira vez que tinha segurado Carrie Anne no colo, quando ela não passava de um bebê, posando para a fotografia que ainda tinha pendurada na parede do quarto. A cabana que eles costumavam armar no quintal, usando a velha lona da garagem. Então se lembrou das expressões de seus pais, quando eles encontraram Carrie Anne caída no chão, embaixo do balanço, com sangue escorrendo pela sua boca. Foi você quem fez isso, sua mãe disse, com raiva. Foi você quem fez isso à sua irmã.

Ryan levantou de repente, deixando o corpo de Carrie Anne cair para o lado. Era como se todo mundo que já fez parte de sua vida o tivesse abandonado. Ele não conseguia respirar. Não conseguia pensar. Só ficava repetindo baixinho o nome da irmã: Carrie Anne, Carrie Anne, Carrie Anne.

Eram duas da manhã. Ryan estava sentado no balcão de uma velha lanchonete à beira da rodovia. Suas unhas ainda estavam sujas de terra. Suas mãos não paravam de tremer. Ele não conseguia comer nem beber nada. Não tinha certeza sequer de que seria capaz de engolir um gole d’água.

Algumas horas antes, tinha encontrado um pequeno trecho de floresta perto da estrada e passado uma hora inteira cavando um buraco, se assegurando de que ele era suficientemente profundo. Depois de cavar, colocou cuidadosamente o corpo da irmã dentro dele, cobrindo-o com um lençol branco. Ao lado do corpo, deixou o urso de pelúcia com o qual os dois brincavam no dia do acidente de Carrie Anne. Cobrir o buraco foi a pior parte. Ryan foi obrigado a parar várias vezes, exausto. Cada músculo do seu corpo estava tenso e dolorido, e a tristeza que o consumia por dentro tornava cada movimento ainda mais difícil.

Na lanchonete, Ryan estava debruçado sobre o balcão, segurando o copo o d’água, fazendo-o deslizar para um lado e para o outro. A garçonete atrás do balcão era alta e magra e vestia um suéter Penn State[2]. Não devia ter mais que vinte anos. Para aumentar sua inquietação, ela não parava de observá-lo.

[2] Universidade do Estado da Pensilvânia. (N.T.)

– Cara, que bicho te mordeu? – ela perguntou, enquanto servia uma xícara de café a outro cliente.

Ryan não respondeu. Sem dizer mais nada, ela caminhou até a vitrine de vidro giratória sobre o balcão, onde havia uma porção de tortas e bolos rodando sob a luz de uma série de lâmpadas fluorescentes. Calmamente, tirou dali um bolo de chocolate com pedaços de biscoito e cortou um belo pedaço.

– Toma aqui. Esse é por conta da casa. Para adoçar um pouco a sua noite. – A garçonete fez o prato deslizar pelo balcão e parar na frente dele.

– Não, obrigado. Não estou com fome. – Ryan afastou o prato delicadamente.

A garota apoiou os cotovelos no balcão, olhando para ele. – Você vai negar o bolo de chocolate da Sra. Hodges? Melhor ela não ficar sabendo dessa desfeita. Ela se ofende com muita facilidade. – Dizendo isso, ela deu uma olhada para o outro canto da lanchonete, onde uma mulher baixa e forte, com braços enormes, estava varrendo o chão.

Ryan puxou o bolo de volta, mas não conseguia tirar os olhos da garota que o tinha servido. Ela parecia ter mais ou menos a mesma altura de Carrie Anne, com os cabelos loiros na metade das costas. Seus olhos eram castanhos e brilhantes e suas mãos eram tão delicadas... Sem saber direito por que, ele sentiu uma atração irresistível por ela. Mesmo quando ela se afastou para recolher os pratos sujos sobre o balcão, os olhos dele a seguiram.

Por um breve momento, ele se esqueceu completamente dos acontecimentos trágicos daquela noite. Parou de pensar em seu braço apertando o pescoço de Carrie Anne e no modo como ela parecia observá-lo, mesmo depois de morta, com seus olhos azuis bem abertos, ainda brilhando.

A última casa da ruaOnde histórias criam vida. Descubra agora