Chapter IV - Night Has A Thousand Eyes

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Cameron nunca fica sozinha. Os carcereiros não saem, não importa o período. Há sempre dois deles, de vigia, mantendo-a silenciada, a suprimindo. Eles não precisam de nada além de uma porta trancada para mantê-la prisioneira, e eu não precisa de nada além de uma coroa para também estar presa. Não que eu consiga me aproximar dela sem ser arrastada de volta ao conforto da corte. São mais fortes do que eu e estão sempre alertas. O único jeito de escapar de seus olhos é ir ao banheiro, um pequeno cômodo de ladrilhos brancos e torneiras douradas, em outra ala. Há blocos cinza perolados suficientes para fazer minha cabeça latejar e minha garganta fechar. Preciso ser rápida lá dentro se quiser despistá-los. É engraçado, mas antes eu achava que meu maior medo era ficar sozinha. Agora nunca fico só e nunca estive tão aterrorizada. Imagino que Cam esteja ainda mais.
- Eu desejo falar com a prisioneira, guardas - anuncio, impávida.
- Perdão, Alteza - disse o homem que mais se assemelhava a um porco - A entrada só é permitida ao Inquisidor.
Engulo em seco. Maldito.
- Dom Solomon não se encontra no palácio neste momento, mas eu, sua futura rainha, sim - tempestuei com mais firmeza - Você deveria demonstrar desde já a quem vossa lealdade realmente pertence.
Em alguns breves momentos, o guarda porco conversa com os outros.
- Claro, Alteza. - sorriu ele, fazendo uma breve reverência - Tudo por nossa futura rainha.
- Sensato - disparei, antes de adentrar na cela.
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Não há espelhos, nem mesmo um banheiro. Sei o que este lugar está fazendo com ela. Apesar das refeições reforçadas e da ociosidade, seu rosto está ficando mais fino. Seus ossos machucam sua pele conforme vai definhando, mais afiados do que nunca. Não há muito o que fazer além de dormir ou chorar; mesmo assim, a exaustão se instalou dias atrás. Os hematomas surgem a cada vislumbre que tenho de sua pele. E a coleira parece quente, ainda que os dias estejam frios. Destarte, Cam treme. Talvez seja febre.
Não que ela tenha alguém para confirmar isso. Mal fala desde que entrei. Fazia sentido: as portas se abrem para comida e água e para a troca dos carcereiros, nada mais.
- Cam, sou eu - sussurro, tentando atrair sua atenção - Catherine.
Com isso, seu rosto se levanta e um sorriso amarelado me é lançado. Minha irmãzinha está viva.
- Cat, eu sinto muito - retrucou ela - Não os vi vindo, tampouco pude prever que você deveria estar indo ao meu encontro. Mas como chegou aqui, e que roupas são essas?
- Eu estou disfarçada, Cameron - rebati, hesitante - Disfarçada como a princesa de Ilhures.
- O quê?! - vocifera ela, calando-se rapidamente.
- Foi minha única alternativa para salvá-la.
- Cat, essa farsa não perdurará. Você não é uma princesa, é uma plebéia. E pior, uma bruxa.
- Nunca mais repita essa palavra aqui, Cam - repreendi - Para todos os efeitos, você é uma plebéia que foi presa por engano.
- Eles me viram curando um cervo - disse ela - Ao menos, os guardas viram. O Inquisidor apenas me interrogou.
- Ele agrediu você?
- Apenas me deu uma bofetada.
Ela mentia. Seus hematomas a denunciavam.
- Ele vai perder a mão por isso, eu prometo.
- Irmã, até que decidam algo, você é a minha preocupação - afirmou ela - Caso consiga fugir, como será para que fiquemos juntas de novo? Você foi introduzida como uma princesa, uma integrante da família real.
- Eu não posso simplesmente abandonar a corte agora, Cam - disse - Vai requerer paciência, cautela. Mas você sairá daqui o mais rápido possível, eu prometo.
Ela assentiu, me abraçando. Gostaria de levá-la para os meus aposentos, cuidar dela como sempre mereceu. Mas aquela vida não era de Cameron, sequer era de Catherine.
Levantei-me tentando não chorar mediante ao sofrimento da minha irmã.
- Eu voltarei, eu prometo.
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Precisava arranjar uma maneira de tirá-la da cela, do castelo. Mas como fazer isso repleta de afazeres de Celeste de Pottier?
- Vossa Alteza costuma visitar esse tipo de lugar? - inqueriu Amber, fria.
- Majestade - faço uma reverência - Não imagina como me alegro em revê-la. Estava indo ao vosso encontro.
- Através das masmorras? - riu ela - Minha querida, eu sou uma rainha. Não me trate como tola.
- Jamais cometeria um ultraje desses - sorri, falsa - Inclusive, gostaria de mais conselhos vindo da minha predecessora.
- Não sou sua predecessora ainda, Celeste - afirmou a rainha - E, com muita sorte, jamais virá a ser.
- Realmente a incomoda o fato de estar perdendo o trono de Alhures, não é mesmo, Majestade? - debochei - Digo, sua ânsia em fazer da princesa Mirtes a futura rainha era apenas uma desculpa para continuar governando por detrás da aliança com Arcádia.
- Você não é Celeste de Pottier, sabemos disso - afirmou ela, me fazendo gelar - A questão é quando irei provar isso e quando sua cabeça irar rolar, usurpadora.
- Jamais escutei tamanho absurdo - formulei, rápido - Majestade, é de se esperar que uma mulher sensata como és tenha atitudes mais cabíveis. Você não tem provas do que diz, caso contrário, já teria feito uma denuncia formal ao Conselho da Dália.
- Eu posso não ter provas concretas contra Vossa Alteza ainda, mas não se esqueça que as paredes deste castelo, tal como a noite - sussurrou ela, desestabilizando-me - Têm mil olhos e mil ouvidos. E todos eles estarão voltados para você.
Amber me queimou com o olhar e, em seguida, partiu.
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A aula de história não fora muito mais tranquila do que o resto do dia. As ameaças de Amber não foram vazias, ela sabia de algo. Mas como? Como ela descobrira a verdade quando eu desempenhara meu papel com perfeição?
- Alhures e Ilhures - continuou Luce - Por que os dois reinos receberem esses nomes tão similares?
- Quando a divisão da Dália começou, dois irmãos gêmeos disputaram as terras que hoje correspondem aos dois reinos mencionados - retruquei - Entretanto, após travarem uma guerra mortal, a que seria conhecida como a primeira grande batalha da Dália, a morte veio ao encontro dos dois. Com a morte desses dois monarcas, os reinos receberam nomes semelhantes para simbolizar.
- Perfeito - sorriu Luce.
- Ela sabe, Amber sabe - disse, destemperada - Sabe que sou uma impostora.
- O quê? - bradou ela - Como?
- É exatamente o que temos que descobrir. Mas, por sorte, ela não tem como provar - tranquilizei-a. - Meu pai, onde está?
- O rei Augustus está vindo ao vosso encontro após uma reunião com Suas Majestades - informou minha dama - Ao que parece, com a morte vindoura do rei Tiberias, a senhora e o príncipe Froy devem ser coroados rei e rainha.
- Amber não quer que esse casamento aconteça, mas quer ver Froy no trono - ponderei - Luce, você acha que a rainha pode ter algo relacionado com o atentando ao rei?
- Catherine, eu não posso afirmar, pois não sei - finalizou Luce, com terror nos olhos - Mas não é impossível. E se ela foi capaz de tentar matar o próprio marido para seu próprio proveito, o que não faria contra Vossa Alteza?
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O rei Augustus era um homem gentil e um pai maravilhoso. A vida de Celeste era realmente algo que causaria inveja em qualquer plebéia, mas não sei se a verdadeira princesa de Ilhures tinha uma felicidade genuína. Não trancafiada em uma torre.
- O que a aflige, minha filha? - indagou ele, sorrindo.
- A rainha Amber, meu pai - talvez fosse vantajoso colher informações com um verdadeiro nobre - Sinto que ela não gosta muito de mim, ainda que eu não tenha lhe dado motivos para tal.
- Amber é uma mulher problemática, Celeste - disse o rei - Em sua juventude era ainda mais. Ela é a segunda filha póstuma do rei de Alfambres. Seu irmão é o atual monarca, mas a relação dos dois não é de amor.
- Se não é de amor, é baseada em quê? - supus - Ódio?
- Não é ódio, tampouco amor. Contudo, algo mais forte que ambos - respondeu Augustus - Ademais, posso dizer a você que ela não é confiável. Seu casamento com Tiberias foi uma necessidade, uma época em que Alhures sofria com a falta d'água.
- O que sabe sobre a princesa Mirtes? - continuei.
- O rei de Arcádia é um homem muito restrito, nunca fomos muito próximos - prosseguiu o homem - Em suma, acho que é uma jovem adorável. Apesar de ser influenciável.
Influenciável.
- Por que influenciável?
- Ela foi expulsa de uma conferência em Laios porque a princesa anfitriã sugeriu que ela ficaria mais bonita se fizesse um decote superexposto.
O exato tipo de rainha que Amber quer para Alhures.
- Já que a aversão de Sua Majestade por ti é notável, você não está segura sozinha neste castelo - disse ele, me fazendo tremer a princípio. Não podia sair de Alhures. Não podia deixar Cam - Mandarei que sua guarda pessoal na Torre de Zéria migre para cá.
- Eu agradeço, meu pai - disse, sinceramente.
- Eu partirei ao amanhecer, meu raio de luz - anunciou - Espero revê-la em breve, e em circunstâncias mais agradáveis.
Assenti. Com isso, o rei de Ilhures seguiu o caminho para seus aposentos e eu para os meus. A ameaça da rainha não podia ser subestimada, se fosse descoberta, significaria meu fim. Mas Cam precisava sair daqui antes.
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A primeira manhã da primavera trouxe uma brisa mais fresca para Alhures, mas eu duvidava que permanecesse assim. Com a partida do rei Augustus, sentia-me desprotegida. Fechei os olhos ao ver sua carruagem sumir no horizonte, rumo à Ilhures. 
- Imaginei que estivesse aqui - Froy estava em um traje a rigor, ressaltando sua beleza - Vosso pai partiu a muito?
- Não, Alteza - sorri - É apenas o meu coração de filha que se aperta ao ver o pai partir.
- Sinto muito - assentiu ele - Bom, minha vinda até Vossa Alteza não foi simplesmente ocasional. Minha mãe acha prudente que nós dois passemos os próximos dois dias desempenhando nossos respectivos papéis como monarcas de Alhures.
- Isso significa...
- Você precisará se portar como se fosse a rainha de Alhures - sorriu meu noivo.
- Froy, eu não sei como fazer isso - confessei - Tudo que me lembro é o que Luce resgata do meu passado. Eu ainda não sou uma princesa em absoluto, sequer uma rainha.
- Você é uma Pottier, Celeste - ele segurou minha mão, beijando-a - Você será a maior rainha que Alhures já teve e eu serei o rei mais sortudo por compartilhar o trono com uma mulher de tamanha beleza e perspicácia.
Não pude evitar sorrir. Eu não estava apaixonada, não podia. Mas o que era isso que Froy de Lancaster despertava em mim?
Meu vestido violeta refletia em seus olhos azuis, transparecendo uma nova cor.
- Eu preciso de mais um tempo até me acostumar com a ideia - respondi, enfim - Você me daria uma trégua até o crepúsculo?
Ele arqueou a sombrancelha.
- É o mínimo que posso fazer por você, minha querida.
Froy fez uma reverência antes de retomar o caminho que estava indo.  O palácio estava em polvorosa, alguém estava chegando. Naquele momento, eu pouco me importava. Meu mundo estava ruindo e Cameron ainda estava presa. Dom Solomon voltaria a qualquer momento para continuar seu interrogatório, e eu temia pelo que ele tentaria arrancar dela.
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As masmorras eram muito mais escuras pela manhã. Os guardas não estavam lá, o que me dava uma oportunidade perfeita. Com passos minuciosos, esguerei-me até o portão.
- Cam? - murmurei, orando para que ela ouvisse.
Não houve resposta. Estaria ela dormindo?
- Cameron?
- Vossa Alteza procura alguém? - indagou um rapaz atrás de mim.
- Não, ninguém em particular - retruquei - Na verdade, busco um guarda. Queria um guarda-costa, pretendo visitar o campo.
- Bom, eu sou Harry, Alteza - informou o homem - Seu novo guarda-costa.
- Designaram um guarda-costa permanente para mim? - indaguei.
- Vosso pai, sim. Vim da Torre de Zéria, nos conhecemos lá - sorriu ele.
Algo no sorriso dele me deixava com medo. Era quase como... Se ele soubesse de algo.
- É melhor irmos, Harry - ordenei - Desejo voltar antes do crepúsculo, tenho compromissos.
Ele deu espaço para que eu passasse,  e assim eu faço. Todavia, logo sinto seu braço me pressionar contra a parede enquanto a sua mão esquerda me aponta uma faca.
- Você não é Celeste de Pottier, tampouco uma princesa da Dália - vociferou - Diga-me quem és ou cortarei sua garganta.





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