Salvem-a.
As palavras queimam na minha boca, rasgando o que deve ser uma garganta em carne viva de tanto gritar. Fico à espera do gosto de sangue. Não, não fico à espera de nada. Só da morte. Mas, à medida que meus sentidos retornam, percebo que não sou apenas carne e ossos. Sequer estou sangrando. Estou inteira, embora com certeza não sinta nada. Num ápice de força de vontade, abro os olhos na marra. Mas, em vez de Dom Solomon e seus carrascos, encontro olhos azuis familiares.
- Celeste.
Froy não me dá chance de respirar fundo. Seus braços envolvem meus ombros, apertando-me contra seu peito, me levando de volta à escuridão. Não consigo evitar um tremor no corpo.
- Está tudo bem, eu estou aqui por você. - cochicha ele.
Algo no seu jeito de falar me tranquiliza. Sua voz sai grave e trêmula. Ele se recusa a me soltar, mesmo quando recuo involuntariamente. Ele sabe qual é o desejo no meu coração, mesmo quando meus nervos desgastados não conseguem lidar com isso. Cameron. Cam. Minha irmãzinha.
- Acabou. Você está bem. Está de volta.
Permaneço imóvel por um momento, enroscando os dedos nas dobras da camisa de seda do príncipe. Me concentro em seu cheiro de canela para não precisar sentir meu corpo tremer.
- De volta? - sussurro - De volta para onde?
Outra mão, tão quente que só pode ser a de Luce, toma meu braço. Ela me segura firme, com uma pressão cuidadosa e controlada, suficiente para me despertar. Estou no meu quarto, deitada, viva. Viva.
Isso me ajuda a nadar para fora do pesadelo e retornar completamente para o mundo real. Me inclino para trás devagar, me afastando de Froy.
- Você desmaiou - recapitulou ela - Não sabemos se foi pela fumaça excessiva, ou pela emoção do momento...
- Ela está morta, não é? - fungo - Minha irmã?
É Froy quem responde.
- Eu sinto muito, Celeste. Eu não ordenei que nada daquilo ocorresse, o Inquisidor será expulso de Alhures.
- Não basta. Dom Solomon matou uma criança e tudo que ele recebe de punição é o banimento? - resmungo - Ele precisa ser decapitado, quiçá preso. Mas nada disso ainda seria castigo o bastante.
- Luce, eu poderia falar com Sua Alteza a sós?
Luce faz uma reverência ao se retirar. Por que ele estava me tratando assim? Como a princesa que ele sabia que eu não era?
- Eu finalmente tomei uma decisão - disse ele - Digo, referente ao vosso futuro neste castelo.
- Eu sei que não posso ficar, e sendo sincera, não quero - disse - Tudo aqui perde o sentido quando o motivo acaba de queimar.
- Eu sinto muito por Cameron. Era esse o nome dela, não é?
Assinto.
- A realeza não costuma acreditar em crendices populares, em mitos da igreja - Froy se levantou, segurando minha mão - Bruxas, Inferno... Todas essas alegorias são apenas isso. Todos os monstros em baixo da cama são apenas versões de nós mesmos que tememos mostrar.
- Eu não entendo o quer dizer.
- Não é óbvio? Eu sou Froy de Lancaster, filho de Tiberias de Lancaster, rei de Alhures - disse ele - Ambos os primeiros de seus nomes, cada qual com uma singularidade para demonstrar. Meu pai foi perpetuado como o rei que matou a sede de seu povo, afinal, a aliança com Alfambres proviu água ao reino.
Sigo seu olhar, perdido, tal qual eu estava.
- Eu não sou um modelo para nada, nem como filho. Nosso casamento significa tudo para o meu reinado, e você significa tudo para mim - disse ele - Eu não saberia arrancar o que você deixou em mim. Nem se tentasse. Você poderia ser quem atentou contra o meu pai, mas ainda assim eu te amaria. Você é parte de mim agora, Alteza, e eu não permitirei que tirem nada mais de mim.
Tenho um espasmo com a sensação, surpresa, e o encaro com olhos arregalados e questionadores. Mas ele se concentra na minha pele. Seus dedos traçam linhas estranhas, angulosas, que se ramificam no meu pescoço.
- Você acordou, Cat - ele sorri, usando o apelido pela primeira vez - É tudo que importa para mim. Agora peço que descanse, ninguém deveria ter que passar pelo que você passou hoje.
Com um beijo no meu rosto, Froy se despede. Seus passos calculados me fazem rir.
- Eu sou tão hilário assim, Alteza?
Mas eu não respondo. E ele nem espera que eu o faça. Apagando a luz das velas, meu príncipe sai do quarto.
+++
Com o amanhecer, uma onda de exaustão ameaça me derrubar, mas resisto. Harry. O nome do meu guarda-costa surge na minha cabeça como uma pancada, e eu praguejo por não ter lembrado disso com antecedência. Antes de Cam morrer, Harry confidenciou a mim o que descobrira. Amber, a rainha de Alhures, foi a causadora da morte de Celeste. Era perfeitamente cabível. Somente desta forma ela poderia saber que eu não era a princesa de Ilhures, mas não poderia provar. Não sem arriscar ser descoberta junto. As criadas chegam rapidamente e são orientadas por Luce. Elas tiram de mim o lodo e o cheiro de carne queimada, ainda que eu jamais seja capaz de esquecer. O vestido azul cobalto não deixa que eu demonstre qualquer sinal de fraqueza, na verdade, ele até ressalta minha posição. Caminho sozinha pelo jardim, a luz do sol me faz bem. Ou ao menos é o que me obrigo a pensar. Harry é pouco mais que uma sombra apoiada contra o tronco de um carvalho cujos galhos se abrem para o céu. Um jarro d'água jaz esquecido aos seus pés. Não preciso ver seu rosto para saber que está irritado. Soturno, ele me pega num abraço desprevenido.
- Graças a Deus você está bem. Aquele príncipe desgraçado não me deixou vê-la - disse ele, ranzinza.
- Não seja deselegante - digo. Estou acostumada a lhe dar ordens, mas a frase soa como um pedido.
- Eu ainda não a vi, Cat - ele rapidamente voltou ao assunto que lhe atormentava - Enquanto o Inquisidor... Bem, enquanto toda a confusão acontecia, Amber decidiu fazer uma visita ao irmão que odeia.
Meus lábios se contraem, deixando escapar um sorriso dolorido. O deboche dele é notável.
- Eles realmente afirmaram que foi ela, Harry? - suspiro - Quer dizer, tudo se encaixa, mas é da rainha que estamos falando. Só o simples proferir desta acusação é motivo para forca.
- Não se preocupe, usarei de cautela para abordá-la - afirmou Harry - Não posso comprometer sua identidade, tampouco minha liberdade.
- Eu quero ajudá-lo, você é... muito especial para mim - passo a mão contra sua barba por fazer.
Ele se aproxima de mim, seu suor o faz ter uma essência estranhamente afrodisíaca. Seus lábios encostam na minha nuca. Sinto a sensação por dentro, totalmente arrepiada. As mãos do guarda seguram minhas costas, deslizando pela minha cintura. É o abraço mais sensual que já recebi.
- Obrigado, Alteza. Eu sinto muito por Cam, ela não merecia - disse ele - Vocês não mereciam. Mas iremos nos erguer, das cinzas da tragédia se necessário for.
- Solomon.
A menção o faz congelar.
- ... Ele já deixou Alhures?
- Não, não ainda.
- E onde o bastardo está?
- Na igreja, acredito eu - o guarda passou a mão em suas madeixas, tirando o cabelo do ombro - É o único lugar onde ele, teoricamente, ainda é bem-vindo neste reino.
- O que vocês dois fazem aqui? - a voz da rainha nunca soara tão inoportuna.
Ao que parece, a assassina voltara, e com o seu habitual escárnio.
A mudança facial de Harry lembrou-me de quando nos conhecemos. Era quase como se o Diabo o estivesse controlando, mas a vítima de sua ira não era eu.
- Vossa Majestade não deveria estar tramando outro assassinato? - cuspiu ele - Ou interromper conversas privadas é o seu novo entretenimento?
Bem sutil, Harry, obrigado. Penso, calada.
- Meça suas palavras, plebeu - rebateu minha sogra, sempre felina - Meça-as antes que perca a língua e não tenha chance de blasfemar outra vez.
- Você a matou, eu sei... Mas por quê?
Amber engole em seco.
- Eu não sei que diabos está falando, guarda.
- Você matou a minha namorada, Majestade - vociferou Harry, assustando até a mim - E eu não descansarei até que morra!
Os sentinelas dela se aproximam, mas ela os retarda.
- Não é necessário. O jovem está apenas destemperado, doravante será mais cauteloso em seu ambiente de trabalho - a rainha parecia tensa, se ninguém estivesse a observando, poderia jurar que ela correria - Vamos, temos que retornar à Alfambres. Tenho assuntos inacabados.
Com a sequência de sua saída, Harry volta suas atenções para mim. A vingança era um prato que se servia frio, mas eu não poderia esperar tanto tempo. Eu o provaria quente.
- Mantenha a paz, entendeu? Tente não matá-la, porque eu sei que você quer - sorri - Ademais, fale a Luce para cobrir meus rastros. Eu preciso queimar uma igreja.
+++
O problema do calor é que não importa quanto frio você sinta, não importa o quanto você precise se esquentar, no final, o calor sempre fica excessivo. Minha capa provava isso. E agora o suspiro profundo da brisa de primavera me ajuda a ficar calma, me ajuda a esquecer tudo que ocorreu. Eu não devia ter feito aquilo, penso, pressionando a mão contra minha pele. Não devia ter pedido que o futuro rei mentisse por mim. A lealdade dele é, no mínimo, instável. O sol já se pôs completamente; o céu se tinge de tons cada vez mais escuros de vermelho e laranja. A igreja está localizada no topo de um morro, no meio de uma clareira enorme cercada pela floresta. Tem vista para um vale sinuoso cheio de árvores, lagos e uma neblina constante e volátil. Cresci na floresta, mas este lugar é tão estranho para mim quanto o castelo era. Não existe nada que bruxas repudiem mais que homens religiosos. Olhe em volta. Não há sinal de um vilarejo madeireiro ou de uma vila rural. Não haverá testemunhas. Devo estar bem no interior da região selvagem de Alhures, bem ao norte, longe do centro e próxima aos limites. Um lugar maravilhoso para se esconder.
O salto das minhas botas anunciavam minha presença, mas o som ecoava, dissipando-se. De costas e em pé no altar, o assassino da minha irmã, Dom Solomon. Seguro meus poderes revoltos em minhas veias, implorando por aquilo que vim determinada a fazer. O homem se espanta ao me ver.
- Alteza? - balbuciou ele - O que faz aqui?
O asco percorre meu corpo até se instalar no meu rosto. Retiro meu capuz.
- Vossa Eminência não chegou a considerar que sairia de Alhures sem receber a punição que merece, ou o fez? - zombo - Digo, punição é um termo bastante amplo. Por tantos anos eu temi a fogueira, que tola...
O rosto do Inquisidor se contorceu inteiro quando ele franziu a testa.
- Esqueci que sempre tive fogo em minhas veias.
- Eu não sei o que há de errado com Vossa Alteza ainda, mas algo me diz que descobrirei hoje - bufou ele - Qual era sua ligação com a bruxa? Uma filha que teve escondida?
- Ela era minha irmã - confessei - E sim, Eminência, eu não sou Celeste. Eu sou uma das bruxas que você não conseguiu queimar. E, ao mesmo tempo, sou todas que queimou.
Solomon riu.
- Eu sempre soube que você não era uma mulher qualquer, a centelha demoníaca sempre esteve aí - suas botas fizeram a madeira ranger enquanto ele descia do altar - E eis a prova. O que veio fazer aqui?
- Como disse, eu tenho fogo em minhas veias, vou deixar que elas consumam o que há de errado - fiz uma pausa dramática, degustando o horror no olhar dele - Assim na Terra como no Inferno.
A escuridão me acompanha. Cada vela chia e pisca quando eu passo. As vidraças estouram, cuspindo fogo. O ar vibra, se transformando em fumaça. As chamas acariciam minhas mãos abertas e eu estremeço com a sensação de tanto poder. Achei que tinha esquecido como era. Mas é impossível. Posso esquecer quase qualquer outra coisa no mundo, não meu dom. Não quem e o que sou. Em direção à fumaça, ao perigo, ao que pode finalmente ser minha salvação ou meu fim. Não me importa, desde que não ele não escape desta prisão infernal. Meu vestido se agita em trapos rubi, rasgado o suficiente para me permitir correr o mais rápido possível. As mangas ardem, queimando com cada nova explosão. Não me contenho agora. As labaredas vão para onde querem. Consomem cada espaço visível. Posso ouvir Dom Solomon gritar. Meu corpo estremece de prazer. Nunca senti nada tão maravilhoso. Fico olhando para o incêndio que criei, apaixonada por cada crepitar. Faz tanto tempo. Tempo demais. Deve ser assim que caçadores se sentem quando capturam suas presas.
- Minha irmã morreu gritando, Inquisidor. Morreu em uma dor excruciante, nada mais justo que com você seja da mesma forma - sorrio.
Se tivesse tempo, eu o destruiria com minhas próprias mãos. Partiria cada osso de seu corpo. Mas tenho uma coroa para honrar, para representar. Meu fogo me obedece, deixando uma passagem segura até as portas. Dou uma última olhada para trás: o corpo dele em chamas. Perfeito. Seus gritos já não são audíveis, ele está morto. Abro as portas, sentindo o frescor da noite, entretanto, a visão que tenho em seguida me deixa petrificada. Mulheres usando preto retiram seus capuzes, fazendo uma reverência.
- Abençoada seja nossa rainha - disse uma delas - Estávamos a sua procura.
E então, ela sorri.
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Alhures (#1)
Исторические романыEnquanto o reino de Alhures está tomado pela Peste Negra, uma caça incessante pelas bruxas se inicia, levando Catherine e sua irmã menor, Cameron, a se refugiarem na floresta para evitar desconfiança. Entretanto, quando Cameron é capturada pela Guar...