- A primavera é um tempo fortuito para casamentos - disse a costureira com a boca cheia de agulhas, a destreza de anos de prática.
Ela colocou a última agulha no vestido e deu um passo para trás. Olho para meu reflexo no espelho do quarto. Ele é longo, de gola alta, decote profundo e mangas compridas, foi feito com veludo nas cores verde-água e prata, dando um efeito espelhado ao mesmo. O cinza de Ilhures. O vestido é uma prova viva que a rainha estava prestes a reverberar. Além do veludo, materiais como seda e bordados em pirita bruta e fios de aço – nos ombros, na gola, no colo e no cinto. Eu estava verdadeiramente deslumbrante.
- É lindo! - Luce aplaudiu e seguiu em frente. Seus olhos marrons brilhavam de encantamento - Essa cor lhe cai muito bem, Alteza.
O espartilho em forma de ampulheta modelava o corpo e o deixava curvilíneo onde deveria, levando em conta que sempre fui realmente magra, bastante, na verdade, para não precisar usar espartilho.
A costureira sai, nos dando privacidade.
- É o dia de seu casamento, Cat! Se alguma vez precisar de uma desculpa para adornos, aí está! Apenas imagine como vai ser.
Passei as duas noites anteriores pensando exatamente nisso. Froy estaria usando um traje digno de um rei. Não um traje de príncipe, ocasional como ele sempre preferiu, mas um feito especialmente para a ocasião, assemelhando-se a um uniforme militar: preto com faixas douradas nos pulsos, e runas de ouro e cobre distribuídas pelo colarinho e botões. Ele aparentaria ser muito jovem. Ambos éramos muito jovens. Casaríamos aos dezessete anos. Mas não importava, estávamos correndo contra o relógio. O relógio da vida de Froy, antes que ele parasse.
- Você tem visto ele? - indago, mudando de assunto.
Assim como nas inúmeras vezes anteriores, Lucinda balança a cabeça em negação.
- Ele vai me abandonar no dia em que mais preciso dele? - grunho, nervosa.
- Tente compreendê-lo. Ele teria que acompanhar você até o altar para casar-se com Froy... - murmurou minha dama - Já imaginou martírio maior?
- Eu me sinto a pior pessoa do mundo - disse - Ele não merece nada disso, nenhum dos dois merece.
- As bruxas do Coven não podem ajudar o príncipe? - inqueriu ela - Pelo que você me disse, elas são muito poderosas.
- Após o casamento, possivelmente receberei a visita de Ruby. Se houver alternativa, ela me dará.
- O que planeja fazer agora? A cerimônia será no fim do dia, os monarcas da Dália estão chegando - disse ela - Você será rainha, garota.
Engulo em seco enquanto ela me ajuda a tirar o vestido de casamento. Este era para ser o melhor dia da minha vida, ou ao menos é o que se espera do dia de seu próprio casamento. Todavia, meu inferno estava apenas começando. Antes que Luce removesse-o, a porta se abriu.
- Posso falar com Vossa Alteza por um minuto antes de partir? - disparou Harry.
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Harry agitou seu cabelo negro molhado pelo suor para trás e olhou para mim.
- Coloque-se em posição - foi tudo o que ele disse. Ele fez alguns movimentos, e ao retirar sua espada, a colocou em mãos. - Entrego o meu cargo de capitão da Guarda, Alteza.
Suspirei enquanto mudava o pé de posição.
- Levante sua lâmina - aconselhei. Minha voz era tão fria e profissional quanto a da governanta - Capitão Wentworth, como sua futura rainha e superiora, eu nego a devolução do seu cargo.
Levou algum tempo para que me acostumasse com a sensação de todos aqueles apetrechos sobre minha pele: os braceletes, os espartilhos, as jóias. Agora, no entanto, nunca me fez sentir-me tão poderosa.
- Eu não entendo...
- Eu que não entendo esta sandice, Harry - repliquei - Eu não posso obrigá-lo a ficar em Alhures, eu não poderia presenciar seu sofrimento. Mas eu estou pedindo... Não vá.
Seus olhos me estudam, tentam decifrar quaisquer mensagens subliminares que ele procura.
- Você está tão linda - sua voz soa ranhosa, se não o conhecesse, diria que ele iria chorar - Você é tão linda, Catherine.
- Eu sinto tanto por isso - beijo seus lábios com doçura, sentindo seu gosto salgado de suor. Meu guarda.
- Por tudo ou por isto em especial?
- O que lhe parecer mais apropriado.
- O que eu não daria para ser o homem que vai receber você no altar - ele riu - Eu nunca foi invejoso, sabe? Nem mesmo quando não tinha o que comer. Não invejava a realeza, não até agora.
- Froy está doente, muito mais do que outrora estava. Não posso abandonar tudo, não posso abandoná-lo.
- Eu sei que você me ama, e também compreendo que o ame mais.
- Eu não vou fazer um paralelo, não consigo ser a Suíça. Eu te amo, Harry Wentworth. Mais do que jamais pensei que poderia amar.
- Pare de dizer assim, Cat. Pare de me fazer querer ficar.
Ao invés de assentir, fiquei na ponta dos pés para pressionar meus lábios nos dele. Se o nosso primeiro beijo foi uma explosão, isso foi o sol no deserto. Um beijo forte, quente, impulsor, uma mordida nos lábios inferiores dele e o choque de suas línguas e dente, os dois dele pressionando tão fortemente como eles podiam para se aproximarem. Eles estavam colados juntos, pele e tecido, uma mistura precipitada do calor dos corpos deles. Harry me levantou, puxando tudo de mim para seu corpo, e senti ele puxando o ar com o contato, suas mãos deslizaram da minha cintura para baixo, agarrando minhas coxas. Meus olhos vaguearam sobre ele, trazendo à tona o que era familiar e o que não era: o alargamento dos ombros, a curva de sua cintura, as cicatrizes em sua pele. Sua camisa estava quase toda rasgada, sentia seus músculos pulsavam enquanto ele me beijava. Ruborizei quando senti seu órgão na calça se elevar. Foi quando soube que era hora de me afastar.
- Por favor, não me faça ceder. Eu preciso me casar.
Ele se afastou bruscamente, vestindo sua camisa rapidamente.
- Com sua licença, e vida longa à rainha.
Ele fez uma reverência e com isso, partiu.
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O tempo passa devagar enquanto espero a aula acabar. Mais treinamento, mais protocolo, mais almoços sem sentido que quase me fazem chorar. Após as várias tragédias que se abateram sobre a corte, minhas aulas foram suspensas, mas não mais. Meu vestido era puro cobre, faltava-me somente a águia para me tornar o estandarte de Alhures. Restavam-me poucas horas até o casamento, e Lady Morh me dá uma bronca durante a aula de protocolo. Diz que estou distraída. Não tenho coragem de falar que, distraída ou não, jamais conseguirei aprender gramática. Enquanto isso, o antes lamentado treinamento se torna um escape para minha raiva e o estresse, uma chance de eletrizar coisas ou correr até esgotar tudo o que guardo no peito. Contudo, quando finalmente começo a pegar o jeito da coisa, o estilo do treino muda drasticamente. A porta se abre para a entrada de Marion, a rainha de Alfambres.
- Majestade? - franzo a testa - Está perdida?
- Não, querida - ela sorri, falsa - Estava realmente procurando-a. Em breve você será uma rainha e a mais poderosa de toda a Dália, quero que compreenda a importância disso.
Seguro o riso. Ela está aqui para me fazer desistir. Os reis estão assustados com meu reinado.
- Jamais serei tão bem preparada e apta como outrem, mas garanto que farei o meu melhor - impus, fria - Tenho duas dinastias para honrar, e nada e nem ninguém poderá me impedir de realizar o que fui destinada a fazer.
- Não me interprete mal, Celeste. Jamais quis colocar em jogo sua aptidão em relação à monarquia - Marion cruzou meu braço ao dela - Mas, veja bem... Adalberto está preocupado. Após a morte de Amber, até hoje sem solução, ele perdeu a confiança que tinha em respeito ao sobrinho.
- Froy é um homem bom, ainda aprendendo seu ofício. Tiberias de Lancaster era o rei na época do assassinato, cabia a ele a condução do inquérito - vociferei - Todavia, como a senhora e o rei parecem estar preocupados ao extremo com o caso, os manterei informados doravante seja abençoada com plenos poderes.
- Exatamente o que eu esperava ouvir de você - seu sorriso se alarga mais.
Marion, a rainha que tinha o mesmo nome de nascença da minha mãe, seguiu para a porta antes que eu a paralizasse.
- Não se engane, Majestade. Alfambres é, acima de tudo, um dos principais instrumentos de investigação deste caso. O rei é um suspeito também.
O sorriso dela diminui, mas não desaparece.
- Se tem uma coisa que aprendi em anos casada com Adalberto é não me surpreender com mais nada. Vá em frente, minha querida. Cave fundo, mas esteja pronta para encarar as consequências.
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Luce.
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Alhures (#1)
Historical FictionEnquanto o reino de Alhures está tomado pela Peste Negra, uma caça incessante pelas bruxas se inicia, levando Catherine e sua irmã menor, Cameron, a se refugiarem na floresta para evitar desconfiança. Entretanto, quando Cameron é capturada pela Guar...