Chapter VIII - The Plague

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De volta ao meu quarto, arranco o vestido e jogo a seda no chão. Desfaço o penteado e deixo meus cabelos caírem como ondas negras nos meus ombros. As palavras do Inquisidor ecoam em minha cabeça, salpicadas de imagens desta noite terrível. Os gritos de Froy se destacam entre as memórias, me queimando como uma chama alta. Preciso protegê-lo, mas como? Os corredores da parte residencial fervilham de sentinelas, todos com os nervos à flor da pele. Enquanto aguardo Luce ou Harry aparecerem, troco de roupa. É a primeira vez que faço isso sozinha em dias, e a sensação, por mais estranha que pareça, é libertadora. O vermelho-sangue do vestido me lembrou de Cam, e das atrocidades que Dom Solomon deve ter feito.  Cam, que estava livre, mas até quando? Solomon colocara grande parte da Guarda e de seus homens para vasculharam o povoado e provavelmente as estradas mais próximas. Mas, quando enfim percebo que nenhum dos meus cúmplices virá me ver ainda essa noite, deito minha cabeça pesada no travesseiro macio. Meus poderes estão revoltos, enjaulados. Esperando apenas um deslize emocional para se libertarem. Como gostaria de manipular a água, ou ondular o fogo, ou até mesmo sentir a terra tremer sob meus pés. Mas nada disso era possível, não mais. Quando enfim o cansaço e as lágrimas venceram, chorei dormindo.
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Quando a manhã chega, percebo que felizmente não há mais nenhum evento para sofrer. A rainha age como se nada tivesse ocorrido, recepcionando os outros monarcas. Na minha escolta, percebo a chegada súbita de Harry, seu olhar tempestuoso.
- O que houve ontem à noite após minha retirada?
- Poucas coisas relevantes, mas posso citar algumas - disse ele - Seu príncipe já está bem, ainda que fraco. Foi uma noite e tanto para ele.
Para todos nós, penso.
- O rei de Alfambres e Amber discutiram, o que ocasionou na exaustão do rei Tiberias. Ele voltou a ficar enfermo, digo, mais do que já estava.
- E Cam?
- Segura, por ora.
Por ora.
Perto do banquete da noite anterior, o café da manhã parece sem graça. A sala de jantar “menor” ainda é enorme, com seu pé-direito alto e sua vista para o rio. A mesa, porém, está posta apenas para três. Para minha tristeza, as outras duas pessoas são Amber e o irmão. Já estão na metade da salada de frutas quando chego. A rainha mal me nota, mas o olhar penetrante de Adalberto basta. Os raios de sol refletidos em sua roupa azulada brilhante o fazem parecer uma estrela cintilante.
- Não imagina o prazer que é revê-la, princesa Celeste - diz ele, falso - Quando nos conhecemos, você ainda era menina.
- É um grande prazer rever Vossa Majestade também. Pernoitou com conforto? - indago, formal.
- Meu cunhado jamais permitiria o contrário, ainda que minha irmã se oponha - sorriu ele.
- Al, poupe-a de comentários desnecessários - cortou ela - Celeste, aproveite seu dejejum.
- Teme que eu fale demais, irmã? - ri o rei de Alfambres - Até mesmo eu sei controlar a minha língua. Você, em outro invés, não soube controlar sequer o traseiro de vadia que tem.
- Como ousa me ofender em minha própria casa? Diante de uma adolescente? - sibila Amber, já de pé.
Engulo em seco. O ódio deles não era somente mútuo, era brutal.
- Sua faceta não durará, irmã. Assim como vosso reinado - ele bebe até a última gota de suco antes de finalizar - Em breve toda Dália conhecerá a víbora assassina que reside em Alhures.
Com uma piscadela, o rei Adalberto parte, deixando-nos a sós. Antes que Amber possa formular alguma coisa para justificar o que foi dito, a interrompo:
- Como está Froy?
- Estável. Visite-o. Creio que a sua presença é a que ele mais almeja. Seguindo o mesmo caminho que o irmão, a rainha de Alhures partiu. Entretanto, com o silêncio que se perdurou, não pude deixar de refletir sobre o que ocasionou tamanho ódio e tamanha acusação. Víbora assassina. O que estava escondido no passado de Amber de Guise? Eu descobriria.
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Soube por alto que o rei Augustus não deixou Ilhures para vir o baile. A saúde do bom homem me preocupava, visto que, com sua morte, eu seria coroada rainha. Um peso ao qual eu jamais conseguiria suportar. Ao menos, não agora. Quando adentrei no quarto de Froy, percebi que o mesmo estava dormindo. Um sono profundo e tranquilo, e eu não o atrapalharia. Permaneci imóvel por uns instantes, ouvindo o som da respiração do príncipe. Estava cada vez mais difícil encontrá-lo em um momento calmo e feliz de verdade. Aproveitei aquela ocasião ao máximo, agradecendo por ele estar, aparentemente, em sua melhor forma enquanto estávamos a sós. Contrariando meu desejo, meu noivo acabou despertando. Ele abriu um sorriso bobo, quase infantil. Ele era lindo.
- Pensei que nunca mais a veria novamente - disse ele, zombeteiro - Digo, li que há diversas reações a um beijo, mas fugir logo após o mesmo? Você é realmente atípica, Celeste.
- Peço desculpas por isso, eu estava... - olhei fundo em seus olhos - Eu estava atordoada. A saúde do meu pai declina cada vez mais, e temo que antes que reine ao vosso lado, precise assumir a coroa de Ilhures.
- É totalmente compreensível suas ressalvas - ele se sentou - Maldita realeza. Quando penso que é difícil para mim... Deus, e para você?
- Eu tenho muito medo, Froy. Não é algo que eu estava preparada...
Interrompo minha fala com o que vejo pela vidraça. Froy segue o meu olhar.
- São...
- Aves, sim - afirma ele - E estão caindo do céu.
- O que diabos está acontecendo?
- É um mau presságio. Só pode ser consequência da Peste Negra - digo, levantando - Precisamos comunicar a rainha.
- Cel, eu acredito que ninguém precise ser avisado.
E ele estava certo. Os pássaros não paravam de cair, seus cadáveres jaziam no chão. Eu esperava que assim como as aves estavam perecendo, a plebe também não seguisse o mesmo destino.
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- Majestade, não há dúvidas! - alarmou o Inquisidor - Claramente o agravamento da Peste e a morte das aves são consequência da fuga da bruxa.
- Eu não discordo de Vossa Eminência, mas eu não sou o rei - disse Amber, estupefata - Não posso autorizá-lo a iniciar uma caça às bruxas no povoado.
- Talvez a senhora não possa, mas eu sim.
A intervenção de Froy me pegou desprevenida. O que ele estava fazendo?
- Eminência, providencie tudo. Eu mesmo liderarei esta missão.
Dom Solomon sorriu.
- Será um prazer, Alteza.
- Com todo o respeito, mas isso é uma perda de tempo - vociferei - O povoado está em polvorosa, pessoas estão morrendo. E vocês estão considerando matar mais?
- É justamente sobre aqueles inocentes que esta caçada se baseia, Alteza - afirmou ele - Uma vez aniquilada todas as bruxas de Alhures, a Peste também será.
- Não sou rainha de Alhures, pelo menos não ainda, mas eu jamais permitiria que um massacre como os que ocorreram nos outros reinos se repetisse - percebo que meu tom se eleva, mas não ligo - Você é um assassino, Dom Solomon. Você é a verdadeira Peste da Dália.
Ele estende a mão para mim, mas não ousa me agredir.
- Mostre quem é verdadeiramente, Eminência. O porco imundo que é.
- Celeste! - diz Amber.
- Com vossa licença, Majestade, mas preciso me retirar. O Inquisidor não representa minha fé, tampouco o que a Bíblia defende. É apenas um assassino de mulheres.
Temendo as consequências das minhas palavras, deixo o recinto. Os corredores parece ainda mais labirínticos quando se está com a mente atribulada. Quando enfim cheguei a uma passagem, ouvi risadas. Eram risadas femininas, hipnóticas. Eu quase ri junto ao ouvi-las, mas não havia motivo para tal. Na penumbra, consegui ver quem era. Era Luce. E ela estava... Beijando? Sim, beijando outra garota, uma nobre. E não era qualquer nobre, era a princesa de Arcádia, Mirtes. Quando ela abriu os olhos e me viu, saiu correndo. Eu estava atônita, sem conseguir me mover.
- Cat, eu posso explicar - disparou Luce, envergonhada.
- Explicar o quê, Luce? - ri, debochando de seu nervosismo - Você gosta dela?
Luce sorriu, assentindo.
- É o que importa. Preciso da minha melhor amiga e dama de companhia.
- Claro. O que posso fazer por Vossa Alteza?
- Quero que me ajude. Eu preciso usar meus poderes.
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Eu sentia o tempo gelar ao meu comando. A água que carregava as nuvens do céu tremiam ao cair, inudando tudo ao seu redor. Movimentando o rio de modo violento, finalmente deixei que minha magia agisse por conta própria. Com as estradas inudadas, ninguém poderia caçar Cam fora de Alhures. E àquela hora, ela já estava bem longe.
- É lindo, Cat - sorriu Luce - Você emana poder.
Ri junto com ela. Eu estava feliz, eu estava poderosa.
- Vocês precisam voltar para dentro agora - disse Harry, sorrateiro.
- O que aconteceu? - inqueri.
- Sua irmã, Cat. Eles a pegarem.
- Como isso aconteceu? Eu mesma a coloquei na carroça - cuspiu Luce.
- O carroceiro disse que ela saiu correndo quando chegaram aos limites do reino - afirmou Harry - Um dos homens do Inquisidor a achou vagando.
- Eles vão queimar minha irmã - gelei - Vão matá-la.
- Cat, eu sinto muito. Não há nada que eu possa fazer, não sem arriscar a minha vida e a sua.
- Mas tem algo que eu posso fazer, é desesperado, é imprudente, mas pode ser a única chance de Cameron - suspirei - Eu contarei a Froy toda a verdade. Implorarei, se necessário, pela vida dela.
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Eu corria contra o tempo. Os homens da inquisição religiosa levavam um tronco para a Praça de Amber e estavam apenas esperando a vítima para queimar. A porta de Froy estava aberta, na verdade, estava escancarada. O príncipe herdeiro vasculhava suas gavetas, ele tremia.
Me ajoelhei aos seus pés, as lágrimas outrora temerosas libertaram-se.
- Linda, o que está fazendo? O que houve?
- Eu imploro sua misericórdia.
Eu arriscava minha vida no processo, mas não importa. Não mais. Eu iria implorar pela vida da minha irmã, eu iria confessar.
- Eu sou uma farsa, Froy. Eu não sou Celeste de Pottier, tampouco uma nobre. Sou uma mera plebéia, e pior: uma bruxa - disparei - A garotinha que capturaram é a minha irmã Cameron, e eu estou implorando... Eu estou pedindo...
Minhas lágrimas me faziam soluçar.
- Eu imploro para que não a queime. Deixe-me tomar seu lugar.
           
                             
                           

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