Chapter XII - Lotus

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O resto da corte surge atrás de nós. Suas linhas e fileiras são baseadas nos meandros complexos de relevância e hierarquia. Só eu estou deslocada, a primeira a seguir o príncipe herdeiro, andando alguns passos atrás dele, onde estaria a rainha. Eu não poderia estar mais longe desse título. Olho para o maior dos meus sentinelas na esperança de ver algo além de lealdade cega. Ele usa um uniforme cobre grosso, fechado até a garganta. Estremeço. Os outros sentinelas não olham para mim; seus olhos estão focados mais à frente enquanto fazem linhas rígidas, concentrados. O outro grupo parece exatamente igual, andando ao lado do futuro rei numa sincronia perfeita. Penso no monarca de Lótus, em como deve estar após anos de exílio silencioso. Isso me ajuda a ignorar o fato de que cada passo que dou me leva mais para dentro do palácio, sobre o mármore branco, passando as altíssimas paredes douradas, sob uma dezena de lustres com luzes de cristal esculpidas em forma de chamas. Tudo tão bonito e frio como me lembro. Uma prisão com cadeados de ouro e barras de diamante. Ao menos não vou ter que enfrentar o obstáculo mais violento e perigoso de todos. A rainha está no seu reino de origem, longe o bastante para não atormentar a mim ou a Harry. Uma figura de armadura atravessa meu olhar fixo, passando pelos guardas para se colocar entre mim e Froy. Ele acompanha nosso passo como um guardião obstinado, embora não use o uniforme ou a máscara dos sentinelas. Sorrio. Sei exatamente quem é. Mordo o lábio, me preparando para a dor aguda, mas ela não vem. Um rumor baixo reverbera entre os nobres. Alguns parecem se opor ao novo hóspede, mas muitos concordam. Que estranho. Pensei que todos quisessem-no o mais longe possível. Não, sua tola, ele é apenas uma ameaça para você. Meu subconsciente grita, ameaçando me esbofetear. A Sala do Trono se abre para nos receber e eu o encontro na multidão, longe dos outros. Seus olhos estão vermelhos e pálidos, e seu cabelo prematuramente grisalho como desmonstrava a pintura, foi raspado. O rei agora me encara. Não espero um pedido de desculpas pelo que fez, e provavelmente não receberei. Reflito se seria prudente avisar ao monarca de Ilhures a respeito. Octavius de Knollys abre caminho até mim e não consigo conter um calafrio. Em uma vida paralela, a personagem que represento e ele são, no mínimo, inimigos. Devo interpretar meu papel com maestria. Elevo meu olhar sobre o mármore impecável até seu rosto frio e sanguinário. Sou mais que uma princesa em frente a um rei, sou uma mulher poderosa em frente a um homem de caráter fraco.
- Faz algum tempo que não vejo Vossa Alteza - sibilou ele, sorridente - É uma jovem encantadora.
- Obrigada, Majestade. Eu também não o vejo faz tempo, até onde tive conhecimento, vossa pessoa já era alimento de larvas - sorrio - Mas o que o traz até Alhures?
- Ótima pergunta, querida - sussurra Froy, atraindo a atenção do homem - Vossa Majestade se exilou por conta própria durante anos, e retornou justamente agora, e na minha corte.
- Vossas indagações são coerentes, e eu as responderei - disse Octavius - Todavia, preciso alertá-lo, Alteza, que não estou somente como o rei de Lótus aqui.
- E o que mais representa? - rebato, seca.
- Jadis e Soloris - cospe ele, me fazendo engolir em seco - Que, atualmente, estão unificados.
Originalmente, a Dália era composta por oito reinos. Sendo estes Alfambres, Arcádia, Alhures, Lótus, Ilhures, Laios, Jadis e Solaris. Destarte, a Peste Negra abateu-se sobre ambos no princípio e executou não somente a linhagem real dos reinos, mas também sua população.
- Sei o que estão pensando, mas sim - ele tossiu - Uma herdeira, bastarda, da Casa Charne ainda era viva.
Charne. A família real de Jadis.
- Era viva? - ressaltou Froy.
- Sim, a rainha de Jadis, Antoniette - ele sorriu, e era medonho vê-lo assim - Nos casamos. Foi um casamento feliz, próspero. Entretanto, quando conseguimos enfim reerguer o reino...
- Ela morreu - constatei - E Vossa Majestade tornou-se não só o rei de Lótus, mas de Jadis e Solaris.
- Eles estão unificados, Alteza. Sou somente o rei de Lótus, entretanto, com um vasto domínio de terras.
- Fascinante. Pobre rainha Antoniette, gostaria de tê-la conhecido - confessei - Qual foi o motivo do óbito?
- Ela sofreu um acidente, escorregou e atravessou uma janela do palácio de Jadis - disse ele, com um nítido e falso pesar.
- Acontece sempre, não é mesmo? - diz meu príncipe, compassivo - Bom, os criados o encaminharão até os aposentos, Majestade.
Ele assente, mas não sem antes me lançar um olhar malicioso.
- Espero revê-la mais tarde, Alteza.
Sorrio, falsa. Conforme o rei e seus acompanhantes se designam aos respectivos aposentos, a corte de Alhures se dispersa. Quando finalmente percebo que somente Froy e eu estamos na sala, espero que ele fale primeiro.
- Ele não está aqui para visitar - vocifera ele - Ele está estudando nossas forças, nosso território. Octavius quer tomar Alhures.
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Amber volta apenas na manhã seguinte. Quando entra pelos portões principais do castelo, dou uma atenção especial para o vestido. Azul celeste, o azul de Alfambres. Entretanto, eu não conseguia mais olhar para a roupa. Na verdade, tampouco consigo olhar para Froy, que permanece do meu lado. Eu me sinto uma criancinha estabanada, com os braços mais pesados do que de costume, mas me forço a completar minhas funções. Ela se aproxima alguns passos e sinto seu mau humor.
- É bom saber que o clima de Alfambres não a prendeu para sempre, minha mãe - ele brinca, ajeitando sua postura.
Hoje está bem vestido, com as medalhas brilhando no peito. Vejo poeira no seu cabelo, só não tão rapidamente quanto a rainha, que já tira as luvas de couro com os dentes.
- Ah, sim, esses livros velhos - tosse ele, acenando com a mão.
- Como está o rei Adalberto, Majestade? - pergunto, mal intencionada.
A menção do nome do irmão retrai suas sombrancelhas preguiçosas. Quase consigo ver os músculos se contraírem sob sua pele e uma mão bate de leve no bracelete em seu punho. Cada tinido suave dos aros de metal é sonoro como um sinal de alarme. Basta uma faísca para ela queimar. Mas o fogo não me assusta mais.
- O mesmo porco imundo de sempre, Alteza, agradeço a preocupação.
Seu olhar se volta para Froy.
- Alguma novidade na minha ausência, querido?
- O nome Octavius de Knollys ainda a lembra de algo?
Se não a conhecesse, poderia dizer que Amber estava assustada. Seus olhos castanhos, iguais aos meus, tremulavam.
- Bom, ele está vivo. E é nosso novo hóspede.
- O rei de Lótus está vivo? - murmurou ela - Isso não é possível.
- Mãe, precisamos ver o papai - afirmou Froy - Ele precisa estar em concordância com tudo que fiz até agora. Posso encontrá-la mais tarde?
Assinto, abraçando-o. Amber e o filho partem, me deixando sozinha, mas não por muito tempo. Em uma fração de segundos, me deparo com o Diabo.
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Não importa quantas vezes eu fuja dessas formalidades extravagantes, pareço condenada a representar um papel. E neste momento, aturá-lo se transforma na minha obrigação.
- Vejo que a rainha está de volta - diz ele, obtuso.
- Sua Majestade não é uma mulher que se ausenta de seu lar por muito tempo - o homem me estuda enquanto falo, procurando rachaduras para explorar - Definitivamente o senhor deve conhecer o velho aforismo sobre o gato e os ratos.
- Vagamente, Alteza. De qualquer forma, eu realmente queria falar contigo - afirma ele - É sobre o seu futuro, princesa.
O crucifico com o olhar.
- E como isso o influencia, Majestade?
- Eu sei que está prometida ao menino Froy e provavelmente casar com um desconhecido deve ser algo difícil para você - seu rosto se contorce novamente, desta vez em falsa preocupação - Eu sou atualmente o rei da maior potência de toda Dália, princesa. Ilhures seria uma adição vantajosa para mim em ambos os sentidos, além de para Vossa Alteza, claro.
Rio com a proposta descarada. O homem estava me propondo uma aliança no castelo do meu noivo.
- Sua presença me dá asco, Majestade. Você é um homem podre, separou pai e filha, desintegrou um reino... - fito seus olhos azuis tempestuosos - Jamais espere que eu me una a você, eu não o faria mesmo se minha vida dependesse disso.
- A guerra com Ilhures foi causada por vosso pai - bradou ele - Ele me negou sua mão, negou uma aliança entre nossos reinos.
Fazia sentido. Era este o motivo da princesa Celeste ter sido posta na Torre de Zéria em segredo, ela estava escondida dele.
- Froy é o meu noivo, e eu jamais o trairia - uivei - Serei rainha ao lado dele, e unificaremos Alhures e Ilhures não só como a maior potência da Dália, mas como a prova viva de que o poder é algo que se conquista, não pode ser roubado. Não que Vossa Majestade entenda.
Octavius me tomou em seus braços. Sua mão segura meu queixo com força, me obrigando a ficar num silêncio assustado. O gesto faz com que me curve para trás, quase perdendo o equilíbrio. Eu queria que isso acontecesse. Queria cair para longe de suas mãos, encontrar o chão e me estilhaçar em mil pedaços. Seu olhar era mais malicioso que outrora fora, e seus lábios ousaram: não foram em direção aos meus, como esperava, mas aos meus seios. Com suas próprias mãos, ele rasga meu vestido, usando sua língua para explorar a região. O empurro, desequilibrando-me mais ainda. Meu tapa sai fraco e quase não move sua mandíbula. Minha outra mão acerta seu peito, também sem efeito. Ele quase revira os olhos com a tentativa. Talvez até sinta prazer. Meu rosto fica vermelho de raiva e de uma tristeza desconsolada.
- Como pôde? - grita Amber, sua voz poderia rasgá-lo no meio. Se não fossem os olhares, meus poderes estariam por toda parte. Em vez disso, são lágrimas que jorram de mim.
- Como pode continuar sendo desse jeito? Eu te matei, Octavius. Matei sua maldade, mas ainda assim... Ainda assim seu mal não pode ser erradicado.
- Vocês duas vão me pagar caro pelas humilhações que me fizeram passar - jurou ele, antes de sair - Eu destruirei o reino de Alhures, e vocês perecerão com ele.
Meu corpo encontra o chão mais rápido do que eu pude prever, mas Amber estava lá para me segurar. Eu queria gritar, estava tremendo, mas ela também.
- Está tudo bem, querida - disse ela, sua voz ranhosa - Ele não pode fazer mal a você. Ele nunca mais fará mal a ninguém.
Foi aí que eu entendi. Eu não fui a primeira a ser vítima do crápula. Amber havia sido violentada, e por isso, tentou matá-lo.
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Eu nunca havia visitado os aposentos da rainha antes. A suíte era ricamente enfeitada com pérolas brancas e pedras preciosas, condenada a juntar pó em memória de todas as predecessoras de Amber. Sinto um frio na barriga, embora não entenda o porquê. Algo me diz para levantar, para sair deste quarto, desta cama. Voltar para os braços de Harry, que sempre foram seguros. Ou até mesmo para o conforto das mãos de Luce. Não consigo encarar a rainha, não conseguiria encarar Froy.
- Os meus sentinelas não são de Alhures, eles eram da minha guarda privada em Alfambres - diz ela, as primeiras palavras desde o ocorrido - Ninguém saberá jamais o que ocorreu. Não por mim, tampouco por eles.
Sinto a vergonha no ar. Seus olhos perfeitos lacrimejam, mas faz tempo que me endureci para suas lágrimas. A primeira fica presa em seus cílios escuros, uma gota oscilante de cristal.
Não suporto mais isso. Com movimentos desequilibrados, a abraço.
- Eu disse a mim mesma por tantos anos que havia sido minha culpa - iniciou ela - Eu não deveria tê-lo deixado entrar nos meus aposentos. Era o dia do meu casamento, toda a realeza estava em polvorosa. A aliança que traria água à Alhures, a aliança que mascararia o romance com o plebeu. Foi o pior dia da minha vida.
Tão rápido quanto suas lágrimas vieram, elas desaparecem. Secas, como se nunca tivessem existido. A rachadura em sua máscara se fecha. Que bom. Não quero ver a humana atrás dela.
- Ele propôs o mesmo para mim. Propôs a união entre Alfambres e Lótus, mas quando eu neguei... Eu não consegui gritar, ele era mais forte. Os criados estavam ocupados, e eu estava indefesa.
Desta vez, eu não pude evitar as minhas lágrimas. Caíram no colo dela, silenciosas e úmidas.
- Me calei. Ninguém nunca soube disso, não poderia arriscar uma guerra entre Alhures e Lótus na época, mas a sede de poder de Octavius aumentou, e não vejo como isso não ocorrerá depois de hoje.
- Majestade, eu sinto muito - disse - Nenhuma mulher deveria ter que passar por isso.
- Uma vez eu quase o matei, mas explicarei isso mais tarde - disse ela - Preciso que chame seu guarda e Froy. Preciso contar a verdade, toda a verdade.
Com minhas mãos, seco as lágrimas.
- Que verdade?
- Toda verdade sobre o dia que Celeste morreu.















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