Chapter XIV - Mommie Dearest

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Sinto o pesar me atingir como uma espada. Amber está morta. Foi assassinada. As mãos de Froy não conseguem me tirar do poço ao qual caí, do desespero que toma conta de mim. Harry fora levado pelos sentinelas da rainha morta para uma cela úmida até que seu destino fosse determinado.
- Não se preocupe, ninguém vai machucá-lo - afirmou Froy, sua voz ranhosa - Deus, minha mãe está morta.
Viro para ele na mesma velocidade que as lágrimas percorrem seu rosto. Meu príncipe estava mais indefeso do que nunca, à mercê de um luto que não fazia bem a ninguém.
- Froy, eu sinto muito - sussurro em seu ouvido - Eu sinto tanto...
- Eu preciso organizar o funeral, falar com o meu pai... - ele tossiu, engasgando com as lágrimas - Cat, eu preciso ir.
Assinto.
Ele me ergue, beijando minha cabeça. Seu cheiro de canela me tonteia, mas por pouco tempo.
- Procure Luce, fique com ela.
Froy se adianta, não olhando para trás uma única vez. O amanhecer estava vindo, e o pior dia da vida dele também. Eu apenas poderia apoiá-lo quando este chegasse.
                            +++
Luce, geralmente toda piada e sorrisos, cai num estado estranho, meio hipnótico. Olha para o nada e sequer nota quando chego. Meu quarto está em perfeito estado, como sempre, mas falta algo. Algo crucial.
- Ele foi preso na mesma cela de Cam - revela ela - Vão setenciá-lo à forca, Cat. E se não acharmos o verdadeiro assassino...
- Não vou deixar que nada aconteça com ele, eu prometo - disse - Nem que para isso eu precise destruir este palácio pedra por pedra.
Luce levanta e corre até mim. Suas mãos envolvem meu pescoço quando ela me abraça, trêmula. Pobre Luce.
Cansadas, marchamos mesmo assim, nos conduzindo pelos labirintos do castelo. A cada curva, sinto os olhos furtivos dos serviçais, que, covardes, não se permitem nada além de um vislumbre da futura rainha. Juntas, somos uma dupla imbatível, e não demora muito para chegarmos ao fim da escadaria do calabouço. Agora é a minha vez de liderar. Espero sentir medo, mas a pouca luz e o tardar da hora são familiares. Este é o meu mundo: me esgueirar, mentir e interpretar.
- Quem vem lá? Declare seu nome e o que veio fazer aqui! - grita um dos sentinelas.
Reconheço a voz: é o homem com cara de porco. Estico o corpo e me preparo para falar. A voz e o tom são o mais importante.
- Meu nome é Celeste de Pottier, sou noiva do príncipe Froy - respondo enquanto desço os degraus com toda a graciosidade possível. Minha voz é fria e aguda, uma imitação de Amber. Também tenho força e poder. - E não dou satisfações a sentinelas.
Ao me ver, os quatro sentinelas trocam olhares de dúvida. Cara de Porco chega mesmo a me examinar de um jeito rude. Atrás das grades, Harry fica em alerta, mas não se mexe, abraçado aos joelhos. Por um segundo, acho que está dormindo, mas ele se move e seus olhos refletem a luz.
- Preciso saber, Alteza - diz outro guarda, em tom de desculpa. Em seguida, olha para Luce, que surge atrás de mim. - O mesmo vale para ela.
- Gostaria de ter uma conversa particular com meu guarda-costa - forço o máximo de nojo possível na voz. Não é difícil com o sentinela Cara de Porco tão perto. - Temos perguntas que devem ser respondidas e ofensas a punir. Não temos, Lucinda?
Luce desdenha, numa boa representação.
- Será fácil fazê-lo falar, Alteza.
- Não será possível, senhorita - guincha Cara de Porco com seu forte sotaque nortenho - Nossas ordens são de permanecer a noite toda aqui. Não saímos para ninguém.
Uma vez fui xingada por um plebeu porque usei meu charme para convencê-lo a me dar seu belo par de botas. Mas acabei conseguindo.
- Você compreende meu status, não? Em breve serei rainha, e um favor a uma rainha é algo muito valioso. Além disso, este rato precisa de um sermão.
Cara de Porco pisca devagar, ruminando a questão. Luce avulta por trás de mim, pronta para usar seu ódio e força bruta caso precise. Em menos de dois segundos, o sentinela assente e gesticula para os outros.
- Podemos dar cinco minutos. Nada além disso, e somente Vossa Alteza entra.
O sorriso de orelha a orelha que abro chega a fazer meu rosto doer, mas não me importo.
- Muito obrigada. Estou em dívida com vocês.
Eles marcham em fila única arrastando as botas. Assim que atingem o patamar da escada, Luce os segue. Começo a ter esperanças. Cinco minutos é mais do que o suficiente.
Harry praticamente pula nas barras.
- Cat... - cochicha ele, estranhando minha presença, mas o faço se calar com apenas um olhar.
- Achou mesmo que eu ficaria de braços cruzados? - indago, zombeteira - Não posso tirar você daqui ainda, mas Froy o fará.
- Ótimo, agora vou ficar em dívida com o principezinho - resmunga.
- Por que vocês dois não se gostam, afinal?
- Na noite que você foi atrás de Dom Solomon, ele e eu tivemos que limpar os seus rastros - seus olhos fixam-se nos meus - Foi quando ele me disse para ficar longe de você.
- Ele te disse para ficar longe de mim?
- Ao que parece, seu noivo não está muito seguro quanto aos seus sentimentos - disse Harry, segurando minha mão - Ainda que, de certa forma, eu não o julgue por isso. Ninguém em sã consciência quer perder você, Alteza.
- Harry, eu sinto tanto - disse - Não somente por isto, mas por tudo que você vem passando por me apoiar.
- Eu perderia minha cabeça de bom grado se soubesse que você irá reinar sã e salva, sem que ninguém a machuque novamente - afirmou meu guarda - Mas não posso. Não depois do que Amber relatou antes de ser morta.
- Deus, tudo aquilo foi demais para mim. Quem poderia me odiar tanto?
- Algo me diz que não tardaremos para descobrir, visto que quem quer que tenha matado Amber, estava com medo de que ela abrisse a boca.
- Octavius?
- É uma possibilidade que não podemos descartar, mas muita gente tinha motivos.
- Alteza, seu tempo acabou! - bradou Cara de Porco, me fazendo ter birra.
- Você é linda até mesmo quando está brava - riu ele. O maldito sorriso - Agora vá, linda. Não pode se arriscar mais do que já o fez.
Beijo sua mão e ele se esforça para beijar minha testa.
- Por favor, fique bem - sussurro.
Tateio a parede e caminho sem fazer barulho como a felina que sou. Os olhos de Harry brilham e se despedem de mim. Cara de Porco empurra os outros sentinelas para dentro do calabouço, enquanto eu e Luce seguimos por onde viemos.
- Eu falei com ele, Luce. Precisamos tirá-lo de lá o mais rápido possível.
- E conseguiremos, você mesma disse - disse ela, apertando meu braço.
Um dos guardiões dos portões do castelo se adianta até nós, ofegante.
- Desculpe-me, princesa. Sua Alteza a procura, duas convidadas chegaram para o funeral da rainha - disse ele.
- Como a notícia se espalhou tão rapidamente? - penso em voz alta, mas a luz intensa do sol do outro lado das vidraças me responde.
- Quem são as convidadas, senhor? - questiona Luce, graciosa.
- A princesa Mirtes de Arcádia e sua madrasta, a rainha Abigail.
                             +++
A água da baía bate em meus tornozelos expostos, refrescante, revigorante. Faz frio antes do sol se pôr, mas mal noto. Essa simples sensação é como um santuário. Conheço essas águas tão bem quanto meu próprio rosto. Posso senti-las muito além dos meus pés, o pulso da mais leve corrente, a menor ondulação no rio que alimenta a baía, e a baía alimentando o lago. A luz incipiente da alvorada sangra na superfície suave. O reflexo se distorce em traços azul-claro e cor-de-rosa. A calmaria permite esquecer quem sou, mas não por muito tempo. Esperamos juntos, meu noivo, minha dama de companhia e o rei de Alhures, que está com a atenção fixa na face sul do horizonte. Uma neblina baixa toma conta da boca estreita da baía, ocultando a península pontilhada por torres de vigia e o lago mais adiante. Algumas luzes das torres piscam em meio à névoa, como estrelas baixas. Conforme ela se movimenta, levada pelo vento, mais e mais torres se tornam visíveis. Estruturas elevadas de pedra, aprimoradas e reconstruídas uma centena de vezes em centenas de anos. As torres viram mais guerra e ruína do que os historiadores podem contar. Suas luzes flamejam, muitas ainda vívidas tão perto do amanhecer. Os faróis continuarão acesos o dia todo, as tochas queimando e as luzes brilhando. As bandeiras que balançam ao vento são diferentes das que normalmente são vistas no reino. Cada torre exibe o azul celeste de Alfambres.
Para honrá-la. Para lamentá-la. Para se despedir da rainha.
Derramei muitas lágrimas ontem à noite. Não achei que me restasse mais nenhuma, mas elas ainda vêm. Assim como seu pai, Froy fixa o olhar à frente, com a coluna ereta e o orgulho que nem mesmo um funeral pode macular. Apesar de sua natureza estoica, ele chora a perda da mãe. Suas lágrimas são menos evidentes, caindo depressa na baía que banha nossos pés. O mesmo não acontece com o rei: suas lágrimas pairam no ar, uma nuvem de partículas de cristal que reflete a luz crescente da alvorada. Aos poucos, a nuvem cresce e as lágrimas giram constantes, brilhando rápidas, produzindo leves arco-íris em sua pele marrom. Pequenos diamantes nascidos de seu coração partido. Ele está à nossa frente, com a água até os joelhos, as vestimentas de luto flutuando atrás de si. Como eu e príncipe, o monarca usa principalmente branco, com detalhes em azul real. Meu vestido é refinado, feito de camadas intrincadas de uma seda leve, mas não tem forma, como se o tecido tivesse sido apenas jogado sobre seu corpo. As lágrimas nas minhas bochechas secam. Barcos atravessam a neblina, movendo-se em silêncio. Os mastros me são familiares, as proas pintadas de prata e azul. Cada um tem um único deque. Não foram construídos para a guerra, mas para serem velozes e silenciosos, seguindo a vontade da força marinha. Seus cascos têm ranhuras feitas especialmente para seguir nossas correntes, como acontece agora. Foi ideia minha mandar os barcos. Não conseguia suportar a ideia do corpo de Amber sendo arrastado numa longa marcha desde o castelo até os limites de Alhures. Ela teria que passar por cidades demais no caminho, e as notícias de sua morte correriam à frente do horrível cortejo. Nenhum membro da família real de Alfambres compareceu; nem mesmo Adalberto de Guise, irmão dela. Visualizo alguns nobres da corte, o sofrimento nos rostos sombrios, todos de luto como a gente. Não é difícil identificar a chegada do corpo em meio aos uniformes azul e cobre. Quatro sentinelas a acompanham, sem suas armaduras, mas ainda usam as máscaras cravejadas de pedras preciosas escuras, lindas e assustadoras ao mesmo tempo. O corpo da rainha morta vem boiando em nossa direção, como se puxado por cordas invisíveis. Os duques e Froy marcham ao lado do rei, protegendo-o mesmo na morte. Dois dos duques choram. Quando Froy toca o lençol, luto contra a vontade de fechar os olhos. Quero preservar as lembranças que tenho dela, as boas, não as corromper com a visão de seu cadáver. Mas ia me arrepender depois. Respirando devagar, me concentro em manter a calma. A água envolve meus tornozelos, uma corrente gentil em redemoinho, igual à sensação de náusea no meu estômago. Foco nela, traçando círculos com a mente para impedir que o grosso do sofrimento extravase. Mantenho os dentes cerrados e o queixo alto. As lágrimas não retornaram. Seu rosto está estranho, a cor drenada junto com a vida. Sua pele branca e macia, com poucas rugas apesar da idade, adquiriu um tom mais pálido, doentio. Queria que estivesse apenas doente, e não morta. Meu príncipe segura seu rosto, encarando-o com uma força que não consigo reunir. Suas lágrimas continuam a pairar como um enxame de insetos brilhando. Depois de um longo momento, ela beija suas pálpebras fechadas, passando os dedos por seus cabelos compridos e negros. Quase espero que ela se retraia, mas ela não se move. Não pode mais fazê-lo. Tiberias é o próximo, e usa as mãos para pegar um pouco de água da baía e molhar o rosto dela. Ele se demora enquanto a estuda. Isso não aplaca a dor, no entanto. Sua compostura vacila e ele se afasta, escondendo o rosto com a mão. O mundo parece encolher enquanto me movo pela água, minhas pernas lentas e distantes. Froy permanece ali perto, segurando o lençol que cobre o resto do corpo. Ele me encara, com o semblante imóvel e vazio. Conheço esse olhar. Eu o uso sempre que preciso mascarar a tempestade de emoções dentro de mim. Eu o usei no dia que Cam morreu. Imito o rei, despejando água sobre Amber. As gotas rolam por seu nariz aquilino e suas bochechas, acumulando-se nos cabelos. Afasto uma mecha grisalha, de repente desejando cortar um cacho para guardar. Quando me afasto, a superfície onde jaz o corpo dela é removido. O corpo enfim afunda. Mesmo no raso, a água distorce seu rosto. O crepúsculo se anuncia à oeste, com o sol escondendo-se de trás dos morros mais baixos. Ele reflete na superfície da água, me cegando por um momento. Fecho os olhos e penso na mulher que pude conhecer, que sofreu e nunca pode ser amada. A rainha cruel de Alhures, a mãe do meu noivo, a mulher que me salvou. Dou uma última olhada em seu rosto e sinto a energia fúnebre quando enfim ela retorna ao abraço da água.
                               +++
- Eu fui agredido e insultado nesta corte, e ainda não pude comparecer ao funeral da rainha? - brada Octavius, e tento me manter oculta e longe de seu campo de visão.
Froy permanece com os olhos fechados, canalizando a raiva. Ele não pretendia usar a força bruta novamente, não quando a corte estava presente.
- Vossa Majestade já não é mais bem-vindo em Alhures, sua hospedagem foi revogada - anunciou o príncipe - E, sinceramente, achou que fôssemos tão tolos para não perceber vosso plano?
- Concordo que talvez o tenha subestimado, Alteza - o rei dá uma gargalhada maléfica - Mas não deixou de ser um rei fraco, chorando pela mamãezinha querida e com o peso da coroa em sua cabeça. Tiberias está praticamente morto, e eu não vejo razão para não englobar Alhures ao meu domínio.
- Tem o disparate de sugerir tamanho absurdo em frente à esta corte, Majestade? - é a vez de Froy desdenhar - Você não é ninguém. Nem para a Dália, nem para mim. Quero você, seu estandarte e os seus homens fora deste castelo até o cair da noite.
Octavius assente, seu rosto refletindo o ódio.
- Isso não acaba aqui, garoto. Quanto à Vossa Alteza...
Seu olhar perfura minhas defesas. O mesmo sorriso malicioso ameaça me violar novamente.
- Espero revê-la em breve.
O asco percorre o meu corpo, mas a visão que tenho a seguir me deixa mais tonteada: Mirtes entra para prestar os pêsames ao futuro monarca.
- Eu sinto muito por vossa mãe - diz ela - Meu pai também. Ele sente não poder estar em pessoa aqui, mas questões urgentes quanto aos negócios entre Arcádia e Laios pediram uma atenção especial.
- Vossa Alteza pode partir tranquila, e diga ao rei Otto que muito em breve espero vê-lo para o meu casamento com Celeste - sorri ele. - E onde está a rainha Abigail?
Como se estivesse apenas esperando para que seu nome fosse proferido, a rainha entra. O vestido branco raspa pelo chão, gozando da seda específica. Entretanto, algo nela me incomoda. Seu rosto é insuportavelmente familiar, seus olhos e cabelos negros da mesma forma. E é então que sinto o estopim do problema atingir minha mente: eu conheço essa mulher, ela me viu crescer. É um alguém que jurei estar morta, mas o seu fantasma reluzia. A rainha Abigail era a minha mãe.



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