Luce.
Ela ri no meu pescoço, um esfregar de lábios. A coroa pende de seu cabelo vermelho ondulado, aço e diamantes reluzindo entre os cachos cor de rubi.
Relutante, saio da cama, deixando os lençóis de seda e Mirtes para trás. Ela reclama quando abro as cortinas, deixando a luz do sol entrar. Com um gesto seu, fecho uma delas novamente, até que a claridade fique a seu gosto. Eu me troco na penumbra, vestindo as pequenas roupas íntimas que encontro. Hoje é um dia conturbado para corte, tal como normalmente tem sido todo os outros. O rei enfim veio à óbito, seu coração fraco não aguentou outro ataque. Agora Froy era o rei, ainda que não coroado. Me apresso para moldar uma roupa a partir dos vestidos da princesa, o azul predominante me deixa com vertigens por causa da semelhança com o mar aberto. Mirtes cochila enquanto isso, até eu puxar a coroa da cabeça dela. Serve perfeitamente na minha cabeça.
- Isso é meu - resmunga, me obrigando a dar mais um beijo nela. A princesa sorri preguiçosa, seus lábios se curvando contra os meus.
- Não esqueça que você também deve estar presente hoje.
Ela faz uma reverência irônica.
- Ao seu comando, Alteza.
O título é tão delicioso que quero lamber as palavras direto da boca dela. Mas, para não correr o risco de me atrasar, me detenho. Tiro a coroa e a deposito na bancada. Não olho para trás, para não perder o pouco de autocontrole que me resta.
- O que acha de partir comigo para Arcádia após o casamento? - indaga ela, me imobilizando.
Seus olhos estão repletos de súplica.
- Sabe que eu não posso fazer isso, ela precisa de mim - disse - Cat é minha amiga, a futura rainha de Alhures. Ela precisará de todo o suporte que conseguir ter.
- Não precisa ser para sempre, somente enquanto a lua de mel deles durar - ela se levanta - Lucinda, eu preciso que você me escolha. Porque o contrário disso...
- É a respeito daquilo que você está falando? - desdenho - Minha paixão tola por Celeste foi algo passageiro, sem importância. Por que isso a incomoda tanto ainda?
- Porque em breve serei rainha, em breve terei que me casar para que a linhagem dos Sverre seja perpetuada.
- Eu não posso abandonar minha vida, Mirtes. Não quando a promessa de um futuro ao seu lado não é nada além de penumbras e quartos vazios - sussurro - Não quando nosso futuro é mais incerto que o amanhã.
- Escolhas moldam quem somos, Deus sabe que eu largaria minha coroa por você - Mirtes sorriu - Mas não posso, antes de tudo preciso honrar minha dinastia. Eu sei que é pedir muito, amor, mas escolha. Escolha ou perca.
Não respondi, apenas saí e tentei tirar a imagem dela chorando da minha cabeça. Quando os soluços dela começaram, chorei também.
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A Sala do Trono se encontra em polvorosa. O burburinho é irritante, crescente, incessante. Vejo Luce tomar sua posição discretamente, seu olhar distante e perturbado. Quando toda a confusão provinda da morte do rei passasse, conversaria com ela. Conforme nos aproximamos, cortesãos da nobreza despontam no caminho, e a quantidade aumenta a cada passo. A maioria são primos da família. Eu esperava que os filhos bastardos do rei Tiberias comparecessem, mas nem a morte destruía mazelas de longos anos. Cores brilhantes se destacam entre o tradicional cobre, um indicativo óbvio da reunião de hoje. Embaixadores vieram negociar, ou melhor, se ajoelhar. Com a luz da manhã, o ambiente ainda é impressionante com seu piso liso de pedras do rio e a visão arrebatadora do vale. O rio Capital é uma faixa azul sobre o verde sedoso, curvando-se preguiçoso até a tempestade distante. A coalizão não chegou ainda, dando tempo para Froy e eu tomarmos nossos lugares nos respectivos tronos. É estranho ter que sentar no lugar de Amber. São todos feitos de aço da melhor qualidade, polido até refletir como um espelho. São gelados, por isso digo a mim mesma para não tremer enquanto sento. Sinto arrepios mesmo assim, a maioria antecipando a sensação.
Os embaixadores são poucos, mas de alta patente. São os líderes. Os funerais de monarcas absolutos sempre eram mais simples do que os dos monarcas consortes. O de Amber fora memorável, lindo até. O de Tiberias, todavia, passara tão rápido quanto fora sua morte. Saudações e adeus, uma mensagem do Papa e fim. Froy estava rangendo os dentes: cerimônias oficiais como essas fariam partes de seus dias agora, ele precisava se acostumar. Quando Harry enfim chega, minhas articulações congelam e o príncipe herdeiro começa a falar.
- Meu casamento com a princesa Celeste será depois de amanhã - anunciou ele - Na ocasião, além de nossa coroação como monarcas, também selaremos a unificação dos reinos e os subsídios necessários para o povo de Ilhures.
- Perfeitamente, Alteza. Quanto à princesa, será forjada uma nova coroa - anunciou o homem - O cinza característico de Ilhures será predominante, com detalhes em cobre. De acordo?
Assinto, avaliando o homem.
A reunião segue enquanto todos continuam adorando a mim e a Froy, é sinceramente entediante.
O lorde D'arc se afasta, saindo pela porta estreita. O sol reflete em seu cabelo grisalho brilhante. Ele teve o cuidado de se arrumar depois da batalha, para se livrar do suor e das cinzas, substituindo o uniforme manchado de sangue por um limpo. Tudo isso para manter a fachada calma, controlada e estranhamente comum de sempre. Uma sábia decisão. Nobres devotam muita energia à aparência, a ostentar a força e o poder. Ele poderia se camuflar nas paredes se quisesse. Solto um suspiro trêmulo e engulo em seco diante do pensamento que se segue. As paredes escuras do palácio parecem estranhamente silenciosas e nuas. Desvio os olhos da figura de D'arc. Tenho medo de uma nova guerra, de novas mortes. E muito, muito menos, que meu medo de outra prisão. Consorte. Uma coroa impossível. Faria de mim rainha, mas o trono é um lugar perigoso. Muda as pessoas, as corrompe. Quando a reunião termina, saio rapidamente pelas portas, deixando para trás não somente meus súditos, mas também o peso de todas as mentiras que eu carregava.
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Harry sorri quando me vê na Praça de Amber. Mordo o lábio com força para afastar o desejo de beijá-lo novamente. É sedutor e me faz quase compreender sua escolha. Mesmo separados, somos parecidos. Ele suspira e apoia as costas nos arbustos, cruzando os braços. Seus olhos encontram os meus por longos minutos, quando enfim ele se aproxima.
- Como você está?
- Eu não sei direito. Estou prestes a virar monarca - rio, estúpida - É engraçado ter que comandar todo uma população quando eu mesma não consigo comandar a mim mesma.
- Você exige demais de si mesma, será uma rainha fantástica - ele segura minhas mãos, atordoando-me mais - Quanto ao fato de comandar a si mesma, talvez você deva tentar ser honesta com o que sente.
- Eu sei exatamente o que sinto, o problema não é esse - esbravejo - E sim as consequências que as minhas ações, as minhas escolhas, trarão para todos ao meu redor.
- Do que você tem medo? De perder seu príncipe? - desdenha ele.
- Não seja tolo, Froy é muito mais que sua coroa. Ele é bom, é gentil. O problema é você! Você mexe comigo, eu seria uma mentirosa se negasse.
Ele me puxa para os seus braços, seus lábios se entrelaçam aos meus, cuidadosos, mas furiosos. Eu o amo.
- Eu quero tanto que você me escolha... - Harry inicia, sua voz oscilante - Decisões são difíceis, e eu sei que todo um povo depende da sua união com Alhures, mas...
O afasto. Puxo seus cabelos, tão macios quanto seda, preciso que ele mantenha distância.
- O que descobriu na Torre de Zéria?
- A morte de Celeste foi tramada muito antes de Amber enviar aqueles saqueadores - afirmou ele - É um alguém muito ardiloso, Cat. Tenho medo por você, o novo alvo. Mas ninguém vai machucá-la, eu prometo.
- Talvez não devesse fazer promessas que não pode cumprir, capitão Wentworth.
Beijo o seu rosto, onde felizmente sua barba já dá indícios de crescimento, e o deixo sozinho.
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Meus passos ecoam pelo corredor, altos e constantes. Posso ouvir a respiração de Luce bem atrás de mim, a maneira como exala em suspiros lentos e sonoros enquanto espero por uma resposta. Ainda que tenhamos quase a mesma altura e provavelmente o mesmo peso, se é que não peso mais, sinto-me pequena ao lado dela. Pequena e vulnerável. Luce passa por seu próprio inferno e eu tenho sido egoísta demais para pensar nela. Não mais.
- Mirtes quer que eu parta para Arcádia com ela após o casamento - confessa ela - Temporariamente, claro.
Engulo em seco.
- É o que você quer?
Lucinda é tão orgulhosa quanto eu, não deixará que sua armadura ceda. Mas não é preciso de palavras para decifrar seus sentimentos, ela era um livro aberto.
- Se é minha aprovação que precisa, você a tem - digo, sorridente - Mirtes é uma mulher fantástica, merece ter alguém como você ao lado dela. Mas não demore em Arcádia, preciso muito de você aqui.
Luce me abraça, suas lágrimas traçando uma marca no vestido azul escuro. Minha grande amiga nunca chorava. Agora sabia que sim. Queria ter escolhas fáceis como as de Luce, que só envolvessem a mim e a mais outro alguém. Tento não parecer decepcionada, mas meus ombros murcham mesmo assim.
- E quanto a você? - diz ela, subitamente - Eu sei que não está sendo fácil dividir o seu coração entre Froy e Harry.
- Eu os amo, demais. Não posso abrir mão deles.
- Escolha ou perca. O casamento, teoricamente, é neste final de semana - sussurrou ela - Você precisa decidir, mas não por eles, por você.
- Eu amo Harry, mas ficar com ele significa abrir mão da coroa de Alhures. E ao fazer isso, o povo de Ilhures sofrerá as consequências.
- Então você precisa falar com Froy, dizer como verdadeiramente se sente - aconselhou minha dama - Se você não se sente segura com o trono e segura sobre seus sentimentos, o mínimo que ele merece é que você seja honesta.
Assinto, deixando-a.
As paredes de tinta cobre com detalhes em dourado são substituídas por outras de mármore reluzente, marcando o fim da área nobre e o começo dos aposentos reais. Arcadas ainda marcam o caminho, mas fechadas por portões e vigiadas por sentinelas em seus uniformes vermelhos. Há outros guardas patrulhando as portas, que observam a sua futura rainha conforme ela passa. Luce estava certa. Escolha ou perca. Eu escolheria a mim, e isso significava que eu não poderia me casar com Froy. Não quando mantinha sentimentos por Harry.
Quando as portas do quarto do príncipe são abertas, me deparo com uma visão aterrorizante. Froy estava em sua cama, deitado. Fraco, pálido, doente. Sua doença retornara.
- Me deixam a sós com a princesa, por favor - ordena ele, sendo obedecido logo em seguida.
Me adianto para sua cama, beijando sua cabeça.
- O que houve?
- Bom, acho que você sabe - ele sorri.
- Bobo, é sobre sua saúde que estamos falando - o repreendi - Você não pode morrer.
- Eu irei, Cat. O médico me disse que a doença enfim deixou exposta sua intenção - anunciou Froy - De alguma forma, estou sucetível a perder os movimentos do meu corpo. Em breve, tudo irá se paralisar e eu morrerei.
- Froy, não...
As lágrimas já não eram mais teimosas, não desde Cameron. Froy estava à beira da morte, meu príncipe...
- Precisamos nos casar, já. Preciso saber que Alhures estará segura.
Seguro sua mão.
- Froy de Lancaster, você não está morrendo, ouviu?
- Eu não me importo com a morte, Catherine. Eu tenho você, mesmo que seja por pouco tempo - ele chora e sorri, e é tão lindo - Seremos marido e mulher. E teremos muitas flores, e uma noite de núpcias linda...
- Sim, meu amor - engasgo tentando evitar soluçar - Minha escolha é você. Eu escolho você.
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Alhures (#1)
Historical FictionEnquanto o reino de Alhures está tomado pela Peste Negra, uma caça incessante pelas bruxas se inicia, levando Catherine e sua irmã menor, Cameron, a se refugiarem na floresta para evitar desconfiança. Entretanto, quando Cameron é capturada pela Guar...