20 anos atrás

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Morrigan transportou-se com o homem para uma de suas clareiras. Um local onde os deuses escolhiam para ser uma espécie de casa, um recanto privado onde trabalhavam e descansavam. O homem abriu os olhos e viu uma caverna lúgubre e fria. Uma mesa simples com algumas cadeiras. Duas tochas com uma chama pequena. A luz bruxuleava nas grandes rochas da parede. E corvos dormiam serenamente em uma árvore de galhos secos. A deusa se sentou e com um gesto com as mãos pediu que o homem fizesse o mesmo. Serviu duas taças de vinho. Entregou uma ao romano e tomou a outra em sua mão. Ergueu a taça como se sugerisse um brinde e tomou um pouco do vinho envelhecido. A bebida descia por sua garganta como um licor sagrado dos deuses.

── Vamos – disse ela repousando a taça sobre a mesa – Conte-me sua história.

O homem esfregou as mãos. Estava nervoso. Virou o vinho na taça de uma só vez. E abrindo os lábios com receio, proferiu as primeiras palavras...

"Há 20 anos o exército romano chegou a Bretanha. Era um dia comum. O sol estava majestoso no céu. Era o sexto dia após o Litha. Meus pais estavam no campo cultivando os grãos que ainda nos restava. A pequena comunidade que vivíamos estava se esforçando com o plantio. Prevíamos uma grande colheita. Todos estavam trabalhando felizes. Quando tudo mudou. Um barulho perturbador de uma trombeta ecoou entre as árvores, que sopraram no vento uma mensagem para todos nós. Os grandes seres da floresta alertaram "Eles estão aqui. Fujam!". Flechas rasgaram o céu. Anunciavam o grande massacre. Eu tinha apenas nove anos. Estava brincando com meus primos quando vimos minha tia Elly ser atingida na cabeça por uma flecha. Seu corpo rodopiou e seu sangue espirrou na parede de uma casa. O desespero havia tomado conta do nosso pequeno vilarejo. Nas colinas homens armados e com armaduras reluzentes surgiram em seus cavalos. Avançavam com rapidez. Corri para encontrar meus pais. Mas preferia não ter os encontrado. A cabeça do meu pai estava cortada e minha mãe estava escondida na cozinha. Foi a pior coisa que já vi em toda a minha vida. Os romanos varreram o vilarejo. Não deixaram ninguém vivo".

── E você? – perguntou a deusa atenta.

── Eu? Minha mãe eu tentamos sobreviver. Mataram minha mãe. Posso? – perguntou ele olhando para a jarra de vinho. A deusa acenou positivamente com a cabeça. Ele se serviu. Mas desta vez tomou apenas dois goles – Mesmo depois da morte meus pais me protegeram.

── E o que fez depois?

── Eu corri para o bosque... – continuou o romano.

"... e pela primeira vez senti o bosque quieto e frio. Como se os seres da floresta estivessem de luto. Escondi-me por entre algumas rochas, mas foi em vão. Soldados romanos me acharam. Eu deveria ter morrido. Mas o general deles me interrogou e ficou curioso quando disse que era filho de um sacerdote da grande Deusa. E me levou para Roma para ser escravo. Até os dezoito anos servi ao imperador como seu servo. Quando completei dezenove anos me tornei soldado do Império. Aquela agora era a minha vida. Mas ainda que vivesse como eles, usasse as mesmas roupas que eles, minha alma sempre soube de onde veio. E isto - mostrou o cordão - sempre esteve comigo. A lembrança mais forte que tenho da minha mãe. Ela era uma de suas discípulas".

── E como chegou aqui? – perguntou ela intrigada.

── Fui deixado para trás – disse ele gemendo de dor ao se ajeitar na cadeira – Estava tendo uma invasão num vilarejo celta por aqui perto, mas fui ferido gravemente e fiquei desacordado por algumas horas. Quando acordei estava sozinho. Todos haviam retornado para base. Rastejei-me o máximo que consegui. Até que aquela loba me encontrou.

── Muito interessante – disse a deusa se colocando de pé – Então você está me dizendo que é um celta que foi obrigado a viver como um romano por vinte anos?

── Sim minha senhora!

── E Atena? – questionou a deusa dando passos curtos em direção ao homem.

── O que tem ela minha senhora?

── Você prestava algum culto a ela?

── Não minha senhora – respondeu ele convicto – meu coração sempre foi dos grandes deuses. A Deusa e o Deus Cernunnos.

── Eu fiz uma promessa para Atena – disse a deusa próxima ao homem – Prometi que acabaria com todos os guerreiros dela – inclinando-se ela tocou o queixo do homem e o levantou com delicadeza – E você é um guerreiro não é?

── Minha senhora...

── É ou não é? – insistiu ela.

── Sim, minha senhora – respondeu ele engolindo a seco.

── Sim, você é – respondeu ela – Mas não é um romano. Você é um filho da grande Deusa. E um herdeiro de uma discípula minha. Portador de um dos doze amuletos da morte – ela olhou dentro dos olhos do homem – E você me irá me ajudar a se vingar de Atena!

Os Contos Celtas: Morrigan (REVISÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora