Atrás do espelho

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Era um dia de outono, o sol brincava de amarelinha por entre as nuvens.

A vida parecia se transformar enquanto as pessoas corriam pelas ruas, com os cabelos sendo sugados pelo vento e os olhos entreabertos.

As pálpebras contraiam as pupilas.

Foi assim que o céu desabou.

Enormes pedras líquidas seguiram seu caminho do céu ao chão. E tudo se tornou branco, se tornou intransponível.

Assisti tudo isso num confortável hotel do centro.

Não me importei porque tinha com o quê passar o tempo. TV a cabo, frigobar, bebidas, livros, videocassete, DVD, um jogo de tetris, um videogame, e inúmeras lembranças.

Comecei a escutar um CD, mas a vida lá fora, mesmo caótica, me atraía a atenção.

Ensurdecia-me enquanto me desconcentrava, a música transformara-se num silêncio barulhento. Uma ligeira angústia me abateu. Resolvi então assistir um filme.

Nada menos que um clássico, o que tanto me fizera sorrir e sonhar a um tempo.

Nos créditos, minha vida já clamava pela janela. E agora me cegava sem conseguir adentrar no filme que colocava toda a sua magia na minha cara e eu não conseguia sentir. Cegava-me enquanto me desconcentrava, meu inesquecível clássico se transformara em rádio para surdos.

Corri em direção à janela e suspeitei que não era hora de sair.

Desliguei o vídeo e passei para a TV a cabo.

Sim! Qual surpresa agradável aquela centena de canais me traria?

Depois de uma volta inteira pelo circuito de entretenimento, concluí que nada parecia fazer parte do meu universo.

Olhando para o teto, fiz musculação no dedo indicador de tanto trocar canais.

Senti o nada, sorrateiro e profundo, nele só as sensações, e pedaços de lembranças, faziam com que meus sinais vitais se mantivessem conscientes.

Desesperado, procurei algo que me desafiasse e que pudesse interagir.

Olhei maravilhado o jogo de tetris. Meu messias, meu salvador!

Aquele que me levaria ao esquecimento e que mataria com requintes de crueldade o tempo e meu tédio.

Como se tomasse uma injeção de endorfina, liguei o nazareno.

As pedras caiam e cada vez mais os encaixes já não me interessavam. O desequilíbrio e desinteresse pelas peças passaram a ser o porta-voz da minha vida.

A pilha de bloquinhos crescia e eu comecei a jogá-lo de olhos fechados.

Até que o um apito irritante proveio da maquininha indicando minha derrota.

Assim, olhei para o pobre jogo de tetris, crucificado, sem milagres realizados, sem função sobre a minha cama.

Corri até a janela, e tudo havia acabado.

Peguei minha alma estirada no banheiro e parti para a rua como se pudesse encontrar comigo na próxima esquina.

E assim saí. Com as memórias arrefecidas pelas esperanças geradas.

Foram setenta e dois passos até que minha cabeça caísse sobre os ombros e eu notasse que não havia para onde ir e muito menos aonde chegar.

Sentei-me sob um toldo, segurei meus joelhos, coloquei minha cabeça entre eles e chorei.

Sou só e estou só, evidenciei.

Por puro instinto de auto-preservação, pensei no que gostaria de fazer naquele momento. Levantei-me e corri valentemente pela rua procurando uma floricultura e uma papelaria.

Com o que sobrou do dinheiro instalei-me no pior hotel do centro.

Pus numa janela feita de madeira podre um lindo vasinho de violeta. Tirei meus pincéis e minhas tintas do saco de pão e armei a tela.

Cada pincelada, cada observação, cada pigmento, era a fusão perfeita do que via e do que sentia.

Meus dedos viraram pincéis, meu sangue virou tinta.

Os olhos encantavam-se com a inspiração, os braços correspondiam, e aos poucos eu me refletia ali, e voltava à vida. Inesperadamente me reconhecia dentro e fora de mim.

Ao final, pendurei o quadro na parede amarelada e descascada. No lusco-fusco fui dormir numa cama puída.

Ignorando os gritos das redondezas, as poucas cobertas, os bêbados e as prostitutas, fui acalentado por vontades e desejos.

Ao acordar me espreguicei e olhei para o quadro.

Sussurrei encantado:

— Esse é meu lar, esse sou eu.

Até que o casamento me separe

Eu era um. Um mesmo, mas não único. Brincava de esconde-esconde comigo. Sabia que poderia aparecer, mas me ocultava.

Corria atrás de mim para recolher os pedaços de inspiração que por acidente (premeditado) caiam.

Até que a mente cansou da vida enfadonha e começou a enxergar um brilho entre os mortais. Uma luz que cegaria até o sol.

Bem, era uma afronta a incredulidade da vida, ao que eu sempre julguei como óbvia, ignorando seus sabores, cores e sensações.

De repente os sentidos quase virginais, por ironia geraram um apagão mental.

A imagem criada era adornada com os sabores mais apaixonantes da vida. E mais, como toda boa loucura, tornou-se uma ótima companhia, tão ótima que me vi ligado de forma irremediável.

No começo, olhei para meu cérebro desconfiado e perguntei se tudo aquilo era real. Irônico, como sempre, ele me respondeu:

— É como geléia, filho. Real.

E que zangão eu era, quando me deparei com o verdadeiro sorriso no rosto e arrepio na pele.

A suspeita tornou-se fato: de tão espelho, era eu lá fora.

Sem falar dos olhos que brincavam de ser estrelas. Sorri para os céus com reverência e agradeci a Santo Expedito (meu santo de devoção).

E essa relação cresceu como se fosse o tutano da minha alma me recheando e engrandecendo, a cada desafio, vivência e conquistas.

O meu outro eu era mais do que sim, era também a prudência da sabedoria.

Nunca dizia não, porém mostrava o melhor caminho.

E o cérebro assim como os olhos e coração, se inflavam.

Até que o encontro se tornou prazer, o prazer se tornou compromisso, o compromisso se tornou hábito, e o hábito se tornou necessidade.

Nesse ponto eu, o encantado, não sabia onde acabava minha vida e começava a dela. Com o tempo, tornou-se impossível reconhecer quem era quem.

Assim, sem outra opção, propus casamento.

Casei-me, e eu me assumi dois.

Para minha surpresa, logo depois da festa fui levado carinhosamente por alguns enfermeiros.

A lua de mel, e o resto dos dias foram passados no Sanatório dos Passarinhos Verdes.

Diagnóstico: Esquizofrenia

Nem todas doenças são crônicasOnde histórias criam vida. Descubra agora