28 - Confidências

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Após meu cordão corporal ser rompido, fui ficando muito sonolenta e logo dormi, ouvi dizer que todos precisamos de um longo período de descanso ao chegar do outro lado, deve ser por isso que surgiu a ideia da morte ligada ao "descansar em paz" ou "descanso eterno".

Mas isso não é tão eterno assim, para mim foram vinte e um dias terráqueos de sono profundo, porém como aqui o tempo é relativo, posso dizer que parecia eterno enquanto durou.

Quando finalmente acordei, abri os olhos e o céu estrelado estava sobre mim, a noite quente e os sons dos animais noturnos me deram um bem estar seguido de uma alegria inexplicável, só então reparei que eu estava no hospital do Xamã.

Ele me recebeu como uma energia de vô muito acolhedora e Una logo veio me dar as boas vindas, passando sua cabeça em mim e emitindo um tipo de ronronado, como um gatinho.

Levantei da maca feita de tronco para sentir o chão, as árvores, tocar Una, tocar o cocar do Xamã... Nossa, eu parecia uma criança que ganhou um brinquedo novo!

Foi uma sensação indescritível, o calor da terra subindo pelos meus pés, a vibração do coração das árvores pulsando, o vibrar do corpo da Una ao ronronar e a eletricidade e cores etéricas que emanavam do cocar do Xamã, tudo era surreal. Nunca me senti tão conectada a algo, ali me senti com raízes, com a sensação de pertencer à um lugar, mas não era qualquer lugar, aquela era a minha casa, pelo menos nesta fase do jogo.

— Voltei cedo. — eu disse ao Xamã.

— Não, você voltou na hora exata! — ele respondeu.

Samuel ouvindo que eu havia acordado, veio até a mim com ar de celebração, como quando nasce uma criança na terra física. Poucas vezes o vi assim, geralmente só o via sério e rigoroso, com poucas palavras bem humoradas, mas naquele momento ele não era o meu instrutor e sim o meu familiar mais próximo.

Aos poucos várias pessoas vieram me dar as boas vindas, alguns que foram da família terrena, outros amigos e outros que eu não lembrava quem eram, mas que me conheciam tão bem!

Quando tive alta do hospital fui relembrar como era tudo naquela cidade, também fui ver onde eu moraria e de que forma eu seria útil. No início eu queria ficar trabalhando no hospital do Xamã, pois me identifiquei demais com aquele local. Mas quando me apresentaram a biblioteca e os trabalhos que os escritores faziam, vi pular a minha frente a minha nova tarefa.

Isso me fez sentir que eu não era uma gota no oceano, eu mantinha a minha personalidade, meu livre arbítrio! Então depois de uns quarenta dias, criei coragem e perguntei para Samuel:

— Você escrevia através de mim, certo?

— Sim, mas porque você permitia, eu não poderia te forçar, mas tínhamos essa ligação que tornava a escrita tão fluídica.

— Isso quer dizer que eu também posso escrever através de alguém?

— Esse é um processo Ísis, você tem que ir aos poucos se familiarizando com alguém que te dê abertura.

— Na verdade, faz tempo que quero te pedir para mandar uma mensagem para Jasmim através do Elohim, ele tem essa abertura.

— Podemos começar lentamente a fazer uma conexão, assim não o prejudicamos com emocionalismos desnecessários.

Foram longos seis meses de preparos, às vezes induzíamos Elohim a sonhos lúcidos, às vezes o trazíamos para cá, até que...

— Ísis, você está aqui! Que saudades! — falou Elohim, sem se lembrar de nossos encontros no outro plano existencial.

Elohim parecia bem, apesar de ainda estar na cadeira de rodas, ele já estava conseguindo ficar de pé e dar alguns passos, Jasmim o ajudava bastante, ela não desistiu dele, apesar de no começo o culpar pela minha morte.

Eles estavam morando numa casa ao lado de Davi, assim Davi ficava de olho neles, mas sem interferir no relacionamento com sua esposa que estava esperando o seu primeiro filho.

Jasmim considerava Elohim o familiar mais próximo, e ele fazia companhia para ela, além do que ela achou melhor se mudar da praia para não ficar relembrando as cenas que traziam tanto sofrimento.

Mesmo tendo seu apartamento no litoral, ela nunca o visitava, quem cuidava dos negócios era Davi.

Jasmim estava tentando se concentrar em seus estudos apenas, mas ainda mantinha um estado de luto e não se empolgava com nada, porém como me disse sua mãe, o melhor que eu podia fazer agora era não ficar preocupada, pois assim não mandaria vibrações pesadas.

Eu não queria emitir nada negativo, apenas mandar um recado de incentivo, queria mostrar que eu e sua mãe não a havíamos esquecido.

Falei então para Elohim se ele aceitava escrever, apesar de que ele já havia dado o seu consentimento, mas eu precisava oficializar com ele acordado no corpo. Ele aceitou na hora, e eu não precisei acoplar sua mão, apenas ditava e ele escrevia, comecei então a ditar uma longa carta:

" Jasmim, minha Flor..."

Elohim fez aquela cara de "nossa que melação" e eu falei brincando:

— Não questione um fantasma, só escreve!

"Mesmo estando em outra dimensão, não passo um dia sem pensar em você, nosso elo é de alma e não é a distância que irá nos separar, mas quero que você continue sua vida, lembre de cuidar de você como você cuidou e se preocupou comigo e com sua mãe."

Achei importante citar essas coisas que só nós duas sabíamos, para ela ter certeza de que foi eu mesma quem escreveu. Também citei um trecho da música que ela estava cantando para mim pouco antes do meu desligamento, entre outras coisas que são pessoais demais para eu contar aqui. Então finalizei dizendo:

"Falei com sua mãe, ela está linda como naquela foto que você guarda no diário, lembra tanto você! Ela te mandou um recado, disse para você saber que ela sempre te visita tentando te inspirar bons pensamentos, ela também te ama muito, mas eu que te amo mais, viu?"

Terminei assim, tentando falar com certo humor e ainda assinei "Anjinha Ísis", como ela gostava de me chamar.

Não sei como ela recebeu tudo isso, porque depois me disseram que o meu afastamento ajudaria Jasmim a prosseguir sua vida, pois cada vez que ela lembrava de mim, a saudade a invadia e ela ficava relembrando cenas que não poderia jamais ter novamente.

Procurei ser madura e não deixar minhas emoções me dominar, eu também sentia saudades, muitas saudades, por isso sempre pedia a sua mãe para me falar dela e ficava tranquila sabendo que Jasmim estava bem amparada.

Bom... se você leu até aqui, acho que merece saber que depois desta vez que escrevi através de Elohim, voltei outras vezes, e quase um ano depois pedi que ele escrevesse esse livro.

Sim, Elohim! Pedi a ele que escrevesse esta biografia, que eu havia passado meses criando com a intenção de solidarizar com quem passa por dificuldades parecidas.

Eu nem sabia se algum dia alguém realmente leria, mas esta experiência em si foi muito gratificante, senti até que isso ajudou Elohim nesta época difícil de reabilitação, pois o deixava ocupado e se sentindo útil.

Bom... foram longos meses nesta tarefa, e Elohim já está cansado de tanto escrever. Não quero ser um fantasma inconveniente, vou parando por aqui!

— Obrigada por tudo Elohim, agora tenho que ir, Samuel já está me chamando!

O Livro de ÍsisOnde histórias criam vida. Descubra agora