18 - Uma Cura

52 37 1
                                    

Eu já estava me acostumando com a rotina e procurava ser útil para compensar os gastos, comecei a me oferecer para fazer a limpeza das quatro casas que eles tinham na praia, isso era até reconfortante, pois era um tempo em que eu curtia minha solitude.

Também acostumei a acordar muito cedo, antes dos dois irmãos, para escrever e conversar com Samuel que aumentou suas visitas, como se me preparasse para algo importante, mas eu não sabia o que exatamente.

Numa tarde quente da primavera, me deitei no sofá após o almoço, Elohim se deitou no chão da sala e acabamos dormindo enquanto Davi trabalhava no computador trancado no quarto.

De repente fui acordada, nem me assustei, pois estava acostumada com minhas visitas do além. Mas desta vez foi diferente, pois era a Una que estava me chamando fazendo um som alto e me empurrando com sua cabeça. Havia algum tempo que não a via, cheguei até a duvidar de sua existência.

Nisso Elohim acordou num pulo, reclamando do barulho e quando olhou para ela, ficou boquiaberto e começou a gritar tentando expulsá-la da casa, da mesma forma como fez no hospital psiquiátrico. Eu falei baixinho:

— Ela é minha, calma, calma! Não grita senão seu irmão vai te dar mais remédios!

— Sua? É uma pantera? Quem tem uma pantera? Você não pode ter uma pantera! — falou Elohim com seus trejeitos incomuns.

— É, você tem que acreditar em mim, ela é boazinha, mas você não pode contar para Davi que a viu!

— Como ele não vai ver um bicho desse tamanho? Não tem como esconder!

Fiquei sem saber como explicar a ele sem alterar sua situação emocional.

— Você tem que prometer manter a calma enquanto eu te explico, certo?

Ele consentiu com a cabeça enquanto olhava vidrado para ela, então expliquei num tom de segredo:

— Elohim, escuta! Não vamos ter que esconder por que ela está em outra dimensão, então ele não pode ver.

Surpreendentemente, ele entendeu de primeira e tentou por a mão nela para ver se dava pra tocar.

— Não dá pra tocar mais eu sinto um negócio, um vapor... sei lá... tem um cheiro... que fantástico! Isso não morde mesmo! Fantástico! — ele falava baixinho e extasiado.

— O que que é fantástico? — Chegou Davi perguntando.

— Fantástico... é existir! Uma hora você não existe, depois do nada começa a existir e depois não existe mais. — disfarçou Elohim, falando coisas Elohínicas!

Nós dois ficávamos perplexos de ver que Davi não via nada mesmo, sendo que Una era tão real!

— Cuidado, não vai pisar na...

— Elohim, tem regra nova no seu manual de convivência? — Interrompi antes que ele concluísse que era para Davi ter cuidado para não pisar na pantera.

— É que não é bom pisar... no tapete vermelho... que vermelho representa o sangue e... — Elohim inventou como um ótimo ator.

— Quem aguenta esse cara! — Davi riu e foi passando em direção à cozinha, enquanto Una permanecia no tapete vermelho.

Chamei Elohim para dar uma volta até a praia para poder falar com ele longe de seu irmão, Una andava ao meu lado e as vezes fazia uns sons que chamavam a nossa atenção.

— Por que ele não pode ver e nós podemos? Elohim perguntou.

— Não sei nem por que você consegue ver algo que é meu, não entendo também! Mas sei que nossas mentes tão problemáticas são mais expandidas que as das pessoas de senso comum. Tem coisas que não são todos que irão entender, então você não pode ficar falando e nem demonstrando. Entendeu?

— Às vezes não dá! Igual aquele dia que o bicho ia te atacar, como vou ficar sem fazer nada, tem como?

— Eles não podem nos atacar, tenta manter a calma, mas nunca deixe de tomar seus medicamentos porque senão você vê o que existe em outra dimensão misturado com o que realmente não existe, coisas que são só paranoia da cabeça, a cabeça confunde as coisas!

Elohim ficou reflexivo, e era bom poder falar com ele sobre coisas que sempre tinham que ser mantidas em segredo.

Chegamos na praia, ela estava meio deserta, então encostamos na parede de um quiosque que estava fechado, ficamos ali olhando para o mar e para Una. Não entendi por que Una veio me visitar, isso sempre tinha algum propósito.

— Una, o que você veio fazer aqui? — tentei ver se conseguia algum sinal.

— Ísis, pare de falar sozinha, imagina se alguém vê! — ouvir isso de Elohim foi hilário!

— Mantém a calma, vou te apresentar outro ser de outra dimensão! — falei para Elohim quando vi o Xamã se aproximando, então entendi porque Una estava de prontidão, como se esperasse alguém.

O Xamã se aproximou de nós, Elohim muito surpreso tocou seu cocar para ver se também não dava para pegar, não dava.

Eu estava sem palavras, isso sempre me causava um certo medo, pois não era certo ver o que não estava ali! Isso causava no fundo uma sensação de "será alucinação?", mas desta vez foi um pouco diferente, pois éramos dois e eu não acreditava em alucinação coletiva.

O Xamã se sentou em nossa frente e acendeu um cachimbo, a fumaça foi nos envolvendo, notei que Elohim estava na mesma frequência que eu, nós fomos entrando num transe, como se nossos corpos se tornassem leves e um frescor penetrasse a cada respiração.

Começamos a ouvir os sons da floresta e logo fomos absorvidos por aquela imensidão de verde. Fomos caminhando pelas trilhas, Una andava à frente como que mostrando o caminho, chegamos numa clareira, havia uma círculo de homens daquela tribo, dançando e tocando instrumentos, rodeando uma fogueira.

Senti uma força sem igual, como se eu não fosse aguentar, tive o impulso de me deixar cair no chão, mas lembrei que na verdade eu não estava ali, tentei olhar de volta para o mar e me concentrar no meu corpo físico, porém aquela força era mais poderosa e eu não conseguia me afastar dela. Então caí no chão, o Xamã começou a passar em mim umas ervas e penas, senti meu corpo se desfazendo, e me bateu um enorme medo de nunca mais voltar ao normal.

Os sons do tambor alteravam cada vez mais a minha consciência e o medo. O Xamã disse:

— O medo é o seu maior inimigo minha filha! Se entrega!

— Eu tô entregue, mas quero voltar, estou com medo!

Ele deu um sorriso tão amoroso, que me trouxe um conforto que nenhuma palavra poderia trazer. Fui me entregando então, mas um flash daquela existência em que tirei minha própria vida começou a se apresentar me deixando meio que paralisada de medo, querendo muito sair dali e causando um ataque de claustrofobia que deu uma vontade de desmaiar. Eu já estava deitada no chão, não iria cair se eu desmaiasse. Olhei para aquele corpo decomposto que sempre era acompanhado por muito mal cheiro, aquilo era terrível!

— Me tira daqui! Me tira daqui! — gritei e senti Elohim segurar minha mão física!

— Não dá para te tirar de dentro de você! Enfrente seus medos e resolva suas pendências! — aconselhou o Xamã soprando uma fumaça na altura do meu coração e me trazendo um pouco de calma.

Tentei aceitar a imagem daquele corpo ao meu lado e comecei a ver todo o sofrimento que causei a muitos, vi também o túmulo em que este corpo havia sido enterrado, estava escrito apenas Annye, sem sobrenome, ao lado de uma foto.

Notei ao redor as pessoas que realmente se importavam comigo e que sofreram com a tragédia que causei, eu havia me concentrado nos poucos que me ignoraram e então naquela época não pude notar o amor que eu recebia.

Fiquei muito comovida, e fiz uma prece para mim mesmo, me perdoando pelas minhas fraquezas do passado e consegui até agradecer por tudo que já tive força de superar. O Xamã pôs uma flor branca em minha mão e eu a coloquei em meu túmulo.

Pela primeira vez me senti livre, uma liberdade vinda da alma, uma lucidez transcendental. Neste momento voltei a ver o mar com meus olhos cheios de lágrimas, e Elohim permanecia de olhos fechados, fiquei ali em silêncio até ele voltar.

O Livro de ÍsisOnde histórias criam vida. Descubra agora