CAPÍTULO 1-FÁTIMA

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A médica olhou novamente para as mãos da paciente, que agora estavam cruzadas sobre o peito, como se estivessem sido arrumadas dentro de um caixão. Em qualquer paciente, aquilo poderia ser interpretado como um gesto qualquer, mas aquela não era uma paciente qualquer. Aquela era a paciente mais problemática de Alessandra. Às vezes, pensava em passá-la para o seu superior, Dr. Vidigal Castanheira, mas ele não tinha mais vaga e Fátima dissera que não conseguiria se abrir com um homem.

_Não vai me aconselhar a sair de casa e tentar a vida sozinha novamente? _ disse a moça olhando a médica com os olhos abatidos.

Alessandra sorriu levemente.

_Já tentei esse recurso. Você recusou. Devo inventar novas estratégias para te tirar desse inferno. _ disse a médica tirando os óculos e esfregando os olhos cansados._Seu dedo mindinho está inchado. Não acha que deveria deixar de roer, pelo menos, a unha dele até que melhore?_disse mudando de assunto.

Fátima olhou o dedo com a unha mínima.

_Isso seria fácil, se eu não me esquecesse que ele está desse jeito. _disse a moça voltando a cruzar as mãos sobre o peito._Você tem medo da morte?_perguntou Fátima encarando a médica.

_Tenho. Acho que todo mundo tem.

_Pois eu não tenho medo da morte. Às vezes, chego a desejá-la. E aí? Não vai me dar um antidepressivo? Posso tentar me matar a qualquer hora, não acha?

_Não, não acho. _disse a médica séria. Suspirou._Você sabe que, apesar de tudo, eles...os dois, precisam de você. Estão muito velhos para se virarem sozinhos. E tem o Same.

Fátima virou-se para a janela e ficou olhando a chuva que caía.

_Talvez eu não queira morrer. Talvez eu só queira descansar um pouco, me afastar dos problemas.

_E por que não faz isso? Saia por apenas um final de semana..._começou a médica.

_Não, não daria. Os velhos encheriam o meu saco, Marcos não me liberaria e teria que levar Same.

O silêncio dominou o pequeno consultório, quebrado apenas pelo barulho da chuva.

Fátima colocou as mãos entre as pernas e se encolheu. A blusa se levantou um pouco, deixando um palmo do dorso nu. Alessandra desviou os olhos, sentindo-se intrusa.

_Quanto falta?_perguntou Fátima.

_Relaxe. Faltam ainda alguns bons minutos. Quer ir embora?

_Não...Na verdade, gostaria de não precisar sair daqui, dessa posição, desse consultório, dessa situação...você é a única que me ouve, me aconselha, me ajuda...

_E a Lana?

Fátima se mexeu no divã, mas continuou de costas para a médica.

_Ela só quer fazer sexo comigo...só isso.

A médica sentiu um comichão no fundo do estômago. Lembrou-se da esposa Élida.

_E você não quer?

_Não...nem com ela...nem com o Marcos.

_Nem com o Marcos? Achei que ele fosse o homem de sua vida!

_Não...isso passou...Espero que ele não seja o homem da minha vida..._disse Fátima enfática.

_Achei que você gostasse dele, afinal, ele tem te ajudado um bocado com os remédios de sua mãe, não é isso que você elogia na postura dele?_desafiou.

Fátima sentou-se e abraçou os joelhos. Apoiou o queixo neles. Os cabelos haviam se soltado do rabo baixo e frouxo e ela os prendeu novamente. A calça jeans estava surrada e ela usava meias pretas.

_Eu também achei, mas ele não é mais o mesmo. Tem exigido demais de mim, entende? Não tem sido muito cuidadoso...Às vezes...me machuca quando me pega com força, por trás.

_Você não comentou isso comigo._disse a médica a repreendendo.

_É que eu não queria. Na verdade, tenho vergonha de deixá-lo me usar assim e tentar fazer todo o resto...

_Que todo o resto?_perguntou a médica alerta.

Fátima colocou os pés pra fora do divã e começou a calçar os tênis velhos.

_Preciso ir embora. Preciso fazer o jantar. A chuva vai me atrasar.

_Por que não quer falar sobre isso? Seria bom pra você._insistiu a médica._Ainda não acabou o seu tempo.

_Não...hoje não...talvez outro dia...preciso ir realmente. Nos veremos na semana que vem. Obrigada. Tchau.

A porta se fechou atrás da moça.

Alessandra sentou-se exausta. Fátima era sua paciente há quase três anos. Fora mandada pelo posto de saúde do bairro para o atendimento psicológico gratuito. 

Alessandra olhou o relógio. Ainda faltavam sete minutos para o último paciente. Leopoldo era um velho chato e ignorante. Tinha indícios fortes de esquizofrenia e a neura de que alguém o estava seguindo para roubar-lhe os rins e vender.

Dirigiu-se até a porta. Mandaria o paciente entrar, caso ele já estivesse ali. Voltou e sentou-se, pois ele não estava na sala de espera. Daria os costumeiros quinze minutos de tolerância, depois iria pra casa. Só de pensar em Élida a esperando com uma banheira cheia e perfumada, sentia-se arrepiar.

Alessandra esperou o Sr. Leopoldo por vinte minutos, mas ele não apareceu. Talvez a chuva, o trânsito...

_Cristina, todo mundo já foi embora?_perguntou à secretária baixa e magrinha que usava um casaco preto que tampava a minissaia, também preta. 

"Quando foi que começou a onda gótica mesmo?"_pensou a médica.

_Sim, Dra. Alessandra, todos já foram embora.

_Quer uma carona? Parece que a chuva aumentou._disse a médica desenrolando a sombrinha para chegar até o carro.

_Não, obrigada. O Glórian irá me pegar pra gente ver um filme hoje._disse a moça sorrindo.

 "Quantos anos mesmo ela tinha? Vinte e dois?"-pensou a médica.

_Glórian...Glórian é..._ a médica a olhou confusa.

_O meu namorado. Ele se chama Mateus, mas gosta que o chamem de Glórian. Acha mais chique._disse a moça visivelmente apaixonada.

_Ah! Mateus é o seu novo namorado...não era o Sérgio até semana passada?

_Sérgio é um babaca que critica demais o meu jeito de vestir, quer que eu use outra cor além do preto. Está por fora. Nada a ver comigo. O Glórian é mais de acordo comigo, entende?

_Entendo...é claro. Então, boa noite. Pode deixar que eu vi o zelador do prédio vindo pra cá e então, diga pra ele fechar tudo, ok?!

A moça já não a ouvia, nervosa estava arrumando as coisas para ir embora.

A médica levantou a sombrinha e ajeitou a bolsa no ombro direito. Levou um susto com um rapaz alto, magro, cheio de piercings e tatuagens, careca e com o casacão estilo Matrix vindo ao seu encontro.

_A Cristina já está vindo?_perguntou o rapaz aflito.

_Sim, ela já está vindo. Você dever ser o Mateus, eu suponho.

_Glórian, por favor._corrigiu o rapaz.

_Glórian, é claro. Então...tchau.

A chuva  fria a fez arrepiar-se, mas a certeza de que tinha alguém que a amava esperando em casa, a fez sorrir satisfeita.

NOVOS RUMOS-Armando Scoth Lee-romance lésbicoOnde histórias criam vida. Descubra agora