Decepção

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Tudo que vejo é você ultimamente
Bem acordado e nos meus sonhos
Eu vejo seu rosto tão vividamente
Electricity - Dua Lipa

A universidade pela manhã é muito agradável de se caminhar, as árvores com pouca folhagem constroem a bela paisagem. Parece que eu sempre estudei aqui e me acostumei muito rápido com o clima europeu e seco.

Hoje é o meu temível encontro com o professor Hernando Santoro, mais conhecido como demônio. Ele é pós doutor em história, mestre em filosofia e antropólogo. O cara é simplesmente um crânio, eu já li alguns artigos dele sobre os caminhos históricos da humanidade e vários livros relacionando filosofia com história. Cada página, cada palavra era um ensinamento para a vida. Já conheci caras como ele, sempre estudando, dando aulas maravilhosas, mas todos eram egocêntricos e muitas das vezes estúpidos. A inteligência não é sinônimo de educação. Na minha universidade na Bahia tinha um professor que desdenhava de mim e acreditava que eu não passaria nem do segundo semestre. Adorei a cara que ele fez quando me viu receber o meu diploma da graduação e um prêmio de gratificação estudantil.

Meu encontro com Hernando foi marcado para manhã, nem consegui dormir direito. Acordei cedo e arrumei as papeladas, reli várias coisas e vi que tudo estava perfeito. Espero que ele goste bastante da minha dissertação, fiz modificações por meses e juntei informações de anos. Para mim não falta mais nada, mas a minha opinião não importa. O que importa é a palavra final de Hernando.

Entrei no prédio antigo de tijolos vermelhos e detalhes brancos em arabescos. Segui pelo corredor longo e subi as escadas até o terceiro andar. A sala do senhor Hernando é no final do corredor, tem uma porta de madeira, aparentemente, pesada e cheia de detalhes de flores delicadas. A cada passo meu coração batia tão forte que parecia que ia explodir minhas costelas. Mas eu não estava com medo, já passei por muito coisa para temer um professor. O nome disso e ansiedade, e pressa para saber o que Hernando acha da minha dissertação.

Oito horas em ponto.

Dei duas batidas e escutei um “entre”.

Empurrei a porta e dei de cara com um homem nem tão velho, cabelo preto e liso com listras grisalhas na lateral, óculos grossos e de armação escura, uma barba rala por fazer e um estilo social. Sua sala é abarrotada de livros de capa de couro, uma mesa bem grande de mogno, uma cadeira enorme de couro alaranjado e duas poltronas pretas devidamente posicionadas. Há uma cortina preta e de tecido pesado tampando parte da grande janela que dá uma bela vista para o campus.

Hernando está bem concentrado num texto, provavelmente um artigo. Finalmente seus olhos repousaram em mim e ele indicou para que eu me sentasse.

_ Mais uma mulher para poder ensinar._ gralhou.

Como é que é?

_ Senhor Hernando…

_ Eu li o que a doutora Lívia me mandou. Seus artigos, projetos de pesquisa e resumos expandidos. Não é perfeito, mas eu gostei bastante. Tem muito da história do seu país, você não se apropria dos legados dos outros e isso é bom._ disse com sua voz rouca, típica de um espanhol rabugento.

_ Sim, mas minha dissertação é um pouco diferente do que eu venho escrevendo._ disse séria, como se o desafiasse.

_ Vai falar sobre a influência das mulheres na história, já me passaram sobre essa informação. Aposto que vai abordar os assuntos mais óbvios e entediantes. Pode mais que isso. Aposto que vai faltar sobre as russas que matavam nazista._ disse com um leve tom cômico.

Agora dá para entender a má fama. Demorei um bom tempo para fazer esse trabalho e é assim que ele fala do meu texto? O pior é que eu tenho que ficar calada, não dá para discutir com um professor que acha que é o dono do universo.

_ É o que pensei. Quero que faça algo original e me entregue. Busque suas origens, sua terra, sua nação. Acredite que a história europeia nem é tão rica assim._ disse com um leve desdém.

Me levantei e apertei a pasta contra o meu corpo.

_ Qual é o meu prazo?

_ Uma semana.

_ O que? Isso é impossível professor, não vou conseguir terminar de escrever nem a metade nesse tempo.

Esse homem deve achar que eu não tenho vida. Puta merda, nem sei por onde começar, todo meu trabalho foi por água abaixo. Ele simplesmente desprezou meu trabalho sem ao menos ler. Usou só dá dedução para julgar o que escrevi.

_ Use a história de Tereza de Benguela, Dandara dos Palmares. Como eu falei, a história de sua terra.

Nunca saí tão pilhada de um lugar. Minha cabeça está cheia de ideias mas não consigo chegar em nenhum fim, tenho uma boa base para fazer o que ele quer, mas não faço ideia do que colocar no papel. Quer saber? Não estou com cabeça para para me estressar mais com esse trabalho. Gastei meses escolhendo as palavras certas, as citações perfeitas para ele simplesmente ser descartado assim tão rápido. Que merda.

Por um lado Hernando tem razão, tenho que escrever algo mais original e que tenha minha identidade. Tenho raiva de não ter percebido isso mais cedo.

Cheguei no hotel e dormi um pouco e depois fui organizar o que eu ia colocar com introdução no texto, só sobre a Tereza de Benguela e Dandara dos Palmares é muito pouco, tenho que destrinchar mais sobre a história do meu país. Agora meu foco é sobre as revolucionárias negras e sua influência na construção da negritude atual. Mesmo eu lendo muito sobre o assunto, devorando os livros de Djamila Ribeiro não sei ao certo como vou fazer o desenvolvimento do texto, mas hoje não é dia de se pensar nisso.

Depois que eu fiquei um tempo quebrando a cabeça eu almocei bem tarde e vi alguns episódios de Riverdale na Netflix espanhola.

“ Hoje é um belo dia para dançar. O que acha?”

Rocco não demorou muito para me responder.

Hoje eu só quero beber e me divertir, esse trabalho está me fazendo perder os cabelos.

“ As coisas deram certo para você?”

“ Não muito…”

“ Estou disposto a consertar isso. Te pego às 22”

“ Nos encontramos no hall, então”

“ Até mais tarde, Luana”

Só uma diversão de verão.

Depois de algumas horas eu me decidi me arrumar faltando apenas trinta minutos para eu me encontrar com Rocco. Tomei um belo banho, passei um bom creme, meu melhor perfume. Vesti um vestido verde oliva com um fenda transversal bem evidente, coloquei uma bota preta de cano alto com detalhes trançados na parte da frente, passei um batom bem vermelho e coloquei minha lace lisa.

Desci de elevador e quando sai dei de cara com Rocco no hall. Ele está com uma calça preta levemente colada, um Vans Old School preto, uma camiseta com listras vermelhas, brancas e azuis. Seu cabelo está levemente bagunçado e um sorriso galanteador está preso em seus lábios carnudos. Fiz questão de ir desfilando até ele.

_ Cada dia me surpreende mais._ murmurou.

_ É?_ perguntei né fazendo de inocente.

Meu coração deu um belo salto.

_ Sabe disso, Luana._ ronronou perto do meu ouvido.

_ Você realmente acha?

_ Vai acabar descobrindo que é recíproco.

Let it FlowOnde histórias criam vida. Descubra agora