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Acordei pensando que talvez fosse voltar a minha realidade mas, não, eu estava apenas no habitual quarto branco e eu posso ser sincera quando digo que estava começando a me acostumar. Estava deitava na maca e continuava a me sentir tonta. Eu não precisava estar ali, eu não era louca. Tudo o que tinha acontecido tinha que ser real e eu não aceitava de jeito nenhum pensar na ideia de que Dinah tinha morrido.

— Psiu... — eu ouvi de novo alguém me chamando e olhei em volta.

— Camila?

— Não, Karla... — ela riu e cruzou suas pernas. Ela estava sentada no chão com um sorriso travesso nos lábios. Eu não queria ela ficasse perto de mim.

— Camila, vai embora... Me deixa em paz! — eu falei já sem forças pra discutir, ela tinha que me deixar em paz.

— Eu não me chamo Camila. — ela me encarou e estreitou seus olhos. — O meu nome é Karla.

E aquilo não fazia sentido nenhum. Ela era Camila, ela realmente era Camila! E eu não estava viajando, era o mesmo rosto, os mesmos olhos, só não era a mesma roupa porque ali todos usavam a mesma camisola. Será que eu realmente tinha inventado tudo e tinha me perdido da minha mente? Eu tinha certeza que não. Essa garota na minha frente tinha feito da minha vida um pequeno inferno particular e era impossível ela ser tão dissimulada a ponto de fingir que era outra pessoa. Eu não queria conversar com ela e queria muito menos entender como ela tinha entrado no meu quarto.

— Eles te deram muitos remédios... Eu consegui ver. Ninguém devia tomar tanta coisa assim. — era a mesma voz.

— Você pode ir embora?

— Eu queria saber se você queria jogar xadrez. — ela me olhou e puxou um tabuleiro que estava embaixo da minha cama. — Eu posso ser as peças pretas? Gosto muito mais do que as brancas...

— Eu não vou jogar nada com você. — falei olhando-a colocar as peças nos devidos lugares no tabuleiro. Ela não parecia querer desistir.

— Só um jogo? Por favor. — ela me olhou com um olhar pidão.

— Vai embora. — eu realmente estava sem forças para brigar com ela.

— Vamos jogar xadrez... — ela disse com o seu jeitinho infantil e deu mais um sorriso.

— Se eu jogar uma vez você some?

— É uma promessa. — ela levantou a mão e deu risada. Eu conseguia perceber que ela era sim louca e muito, muito teimosa. Ela não parecia ligar para o que as outras pessoas queriam e era um pouco manipuladora, se aquela não era a Camila que eu conheci, eu não sabia quem poderia ser.

— Hum, Camila?

— Karla. — ela rebateu sem realmente me olhar, prestava atenção nas suas peças de xadrez.

— Que seja... De onde nos conhecemos? Você parece muito com alguém qu...

— Eu pareço muita gente para muitas pessoas... — ela me interrompeu. — Cada um me compara com alguém diferente, já pareci uma prima, uma amiga, uma irmã e até uma mãe uma vez... Foi realmente divertido porque insistiam em me comparar com alguém, mas não aceitavam que eu era só eu.

— Você parece inofensiva.

— Isso foi um elogio? — mesmo manipuladora ela parecia realmente um doce. Aquela não poderia ser a Camila que eu conheci, só que elas eram tão parecidas, até a voz. Será que eu tinha inventado tudo? — Vamos jogar?

Com dificuldade eu desci da cama e me sentei na sua frente, minha cabeça doía assim como o resto do meu corpo e, eu sempre quis usar a descrição clichê dos livros, parecia que vários elefantes tinham passado por cima de mim, sem brincadeira, eu não sabia como eu ainda tinha forças pra me levantar e ir até ela. Sentei de pernas cruzadas e ela me encarava sorrindo, jogamos algumas partidas e ela me venceu em todas. Talvez fosse por causa dos remédios, eu não acreditava que era tão ruim em xadrez assim. Só sei que quando eu fui ver, eu e a garota estávamos rindo e conversando, ela parecia uma amiga de longa data mas eu só lembrava de tê-la conhecido minutos atrás. Passamos a semana assim e eu estava me sentindo realmente melhor, eu não ouvia mais Camila falando no meu ouvido, eu realmente achava que podia seguir firme assim. Não tinha ideia do porque da minha família não ter vindo me visitar, talvez não fosse permitido ou talvez eles não quisessem, só sei que sentia um pouco a falta deles. Karla se tornou algo mais próximo de uma melhor amiga para mim e os enfermeiros nem estranhavam quando entravam no meu quarto e a viam ali, apenas sorriam para ela e acenavam para mim, faziam o que tinham que fazer e iam embora.

Eu não me sentia mais dopada todos os dias, mas tinha consciência de que eles ainda me mantinham medicada, eu estava, de certa maneira, sobre o controle deles. Karla tinha me ensinado a jogar xadrez e eu estava tão boa quanto ela, já que esse era o nosso único passatempo, jogávamos o dia inteiro e eu tinha com quem praticar. Eu perdia muitas vezes, ela parecia viciada em jogos e eu consegui perceber a insanidade que habitava nela, ela certamente pertencia ali mas eu não sentia como se aquele fosse realmente o meu lugar, por mais que me fizesse bem, algo em chamar aquela garota de Karla e de estar tão próxima dela me fazia sentir estranha, eu não conseguia esquecer que ela já fora Camila, em alguma outra vida, em algum sonho ou em algum coma, ela já tinha sido um demônio que tinha destruído a minha vida. Mas aquela menina continuava inofensiva e até mesmo carinhosa. Não parecia natural chamá-la de Karla.

— Oi. — um dia eu cheguei no meu quarto e ela estava sentada na minha cama. Ela sorria e tinha uma caixa em suas mãos.

— O que é isso?

— Um novo jogo. — ela sorriu e seu olhos brilharam. — Mas não vamos jogar ainda...

— Por que não?

— Porque primeiro eu quero ir com você em um lugar, depois podemos jogar. — eu me sentei ao seu lado e ela começou a mexer no meu cabelo. — Você iria comigo?

— Eu não tenho mais nada pra fazer hoje... — respondi e ela deu risada. Karla me olhou sorrindo, seu ar divertido era tão diferente do de Camila e eu não conseguia tirar isso da cabeça. Será que eu tinha inventado uma nova personalidade para ela?

— Então vamos. — ela se levantou, segurou a minha mão e fez carinho. Quando ela segurou a minha mão eu me senti quente e com alguma sensação estranha no estômago. Aquilo era horrível. Karla me puxou para fora do quarto, antes de realmente sairmos ela me colocou de costas para a porta e me encarou. Seus olhos brilhando com um jeitinho divertido de criança. — Onde nós vamos é segredo, você não pode contar para ninguém...

— Eu prometo. — disse a ela. E eu realmente não teria para quem contar. Ou ela pensava que eu conversava amigavelmente com algum dos enfermeiros? Carl era o mais próximo que eu tinha de um colega, mas era só isso, um colega.

Seus olhos se intensificaram no brilho, se é que aquilo era possível e ela se aproximou de mim. Na hora eu entendi o que estávamos prestes a fazer, eu não sabia se aquilo era realmente certo mas eu não queria me afastar agora. Karla se pôs nas pontas dos pés e aquela era uma cena realmente adorável. Ela encostou seus lábios nos meus e eu me senti ferver, a sensação de gastura no estômago se intensificava mas eu não podia me afastar, aquilo era tão bom, queria que aquele beijo durasse por toda eternidade. Abracei sua cintura e ela fazia carinho na minha nuca, nos separamos por um breve tempo até ela me beijar novamente, eu era como uma fogueira naquele momento e ela era a lenha, eu me sentia conectada a ela de uma maneira incrível mas não tirava da minha cabeça de que eu estava beijando Camila, na minha cabeça era a garota de calça e regata preta, saltos altos e unhas compridas ali e, por mais estranho que pareça, aquilo parecia tão certo.

Eu tinha meus olhos fechados até que ela se afastou, a encarei e eu podia jurar que via um feixe vermelho desaparecer de seus olhos tão rápido quanto o marrom começou a brilhar.

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feliz ano novo gente, espero que seja um ano maravilhoso pra vocês e que seja cheio de coisas boas :)

O ritual do elevadorOnde histórias criam vida. Descubra agora