Os dois se calaram, dando atenção aos sons que viriam. Ouviram Orann vomitar outra vez. Avyin fez menção de dizer algo, como se tentasse acalmar as coisas, mas hesitou até as pegadas finalmente se aproximarem.
– Seu desgraçado! – Gritou uma voz familiar. – Vomitou onde eu queria dormir!
Yearnan era um cara fresco. Qualquer um pode concordar que vomitar no local onde você vai dormir é simplesmente inaceitável. Mas para quem dorme debaixo das árvores, ter um cantinho só seu é quase uma piada.
– Caça outro lugar pra dormir. – Respondeu Ecco, descendo da árvore num salto, seguido por Avyin. – Como foi?
– Ah, foi legal. Mas os macacos se coçaram.
Para Orann e Avyin, aquilo não fazia sentido algum. Ecco, entretanto, havia entendido o código. Problema.
– Vem, bêbado. Vamos caçar outro lugar pra dormir, longe desse cheiro de cachorro molhado.
Yearnan auxiliou Ecco a carregar o amigo, forte para a bebida, num primeiro momento, apenas. Os três se aprofundaram na floresta, Avyin seguindo na frente com o lampião esticado no ar. Pararam noutro lugar, onde as árvores pareciam formar uma larga trilha. Muitas eram, agora, retas e não se contorciam como antes. O chão estava mais nivelado e era possível ver Erall através das folhas. Cruzaram a trilha e andaram por um minuto ou dois até se aproximarem de um riacho.
Orann se deitou entre as raízes de uma árvore e Avyin fez um comentário sobre suas pernas estarem cansadas antes de entregar o lampião ao irmão e sentar-se sobre um montinho de folhas, afastada do vômito ambulante. Yearnan e Ecco voltaram à trilha, carregando o lampião.
– Aonde vão? – Indagou.
– Até ali. Já voltamos.
Avyin esperou que se afastassem, até que não pudessem ouvi-la. Levantou-se e passou a mão nas roupas, limpando-as. Orann a encarava, quieto, mas Avyin sabia que ele não se lembraria de nada no dia seguinte. Seguiu os dois, devagar.
– O que houve? – Perguntou Ecco.
–O pai da Helenne, você sabe, ele é um Comissário dispensado.
– Sim, eu lembro. Ele foi dispensado por ter machucado a perna, não é? Então o condecoraram como comissário por destaque em batalha.
– Não. – Rebateu Yearnan. – Quem machucou a perna foi o filho dele, o irmão da Helenne.
– Não importa. O que houve?
Avyin sentiu o vento na nuca e expirou devagar, com medo de que o irmão soubesse que estava ali.
– Helenne ouviu uma conversa dele com um voador que foi convidado para o jantar desta noite. O homem está procurando garotos. – Explicou. – O pai dela fez questão de que viesse à Vila das Flechas, porque há mais garotos aqui.
Ecco arregalou os olhos, preocupado. Se ele fosse pego, seria transformado num voador, com toda a certeza. Ele sabia como gostavam de recrutar órfãos sem valor por que não teriam preocupações com família. De maneira alguma Ecco queria ser um voador.
– Devemos sair da vila. – Sugeriu. – Não pretendo ser um voador.
– Para onde vamos? – Perguntou Yearnan.
– Vou à Aerisco. É a única forma restante de sair da ilha.
– Certo. Vamos agora, então. – Yearnan virou-se para voltar até Avyin e Orann.
– Não. – Ecco o interrompeu.
Avyin se assustou. Eles estavam para voltar. Não queria ser vista. Ao dar um passo para trás, porém, o barulho das folhas desmascarou sua presença, congelando-a. Os dois olhavam na direção dela, ela tinha certeza, mas não conseguia vê-los por causa da árvore que a escondia.
– Saia daí, Avyin. – Yearnan pestanejou, furioso, em meio a um sussurro, como se alguém pudesse ouvir. – O que está fazendo aqui?
Avyin, tímida, aos poucos se revelou.
– Eu vou com vocês.
– Não. – Disse Ecco. – Preciso que alguém fique para despistar os voadores. Eles não escolhem garotas.
– Vallenia Vermelha foi uma grande éruja, todos sabem.
– Vallenia Vermelha era pirata e ladina. – Rebateu. – Ela não foi escolhida, porque eles não escolhem garotas.
Avyin se contorceu de raiva. Garoto insolente.
– Mas porque vão te escolher? – Perguntou Yearnan. – Foi você mesmo que uma vez me disse que eles não escolhem qualquer um.
– Sim, eu disse. Mas um órfão é lucrativo para eles. – Explicou.
– Nós estamos ferrados! – Disse Yearnan. Aquilo era desesperador.
Avyin se entristeceu. Cruzou os braços devagar, como se estivesse se abraçando e encostou-se numa árvore.
Ecco abaixou a cabeça e enfiou a mão nos bolsos, chutando algumas folhas e gravetos. Olhou em volta, e se deparou com a esperança estampada nos olhos de Yearnan. E, de repente, nada parecia fazer sentido.
– Calma. – Suspirou. – Orann pode ficar. Ele não seria chamado, por causa do estômago fraco.
– Motivo bem simples, não acha? – Perguntou Yearnan.
– Sim. Mas um cara que vomita a todo instante num navante em calmaria não tem nem condições de participar de missões mais arriscadas.
Fazia sentido.
– Imaginei-o limpando o convés e vomitando logo em seguida. – Yearnan riu baixinho, e os outros também.
– Vamos voltar.
Os três caminharam de volta ao abrigo improvisado que tinham, sem teto nem cobertor. Cada um escolheu uma árvore e deitaram, olhando para o céu, longe e infinito. Tão infinito quanto aquela noite.
Ecco mexia nos cabelos curtos e hirsutos quando amanheceu. Não havia dormido novamente. Seu estômago já não roncava tanto como antes, mas ainda sentia vontade de poder comer. Continuou sentado por algum tempo até lembrar-se do voador. Precisava partir logo.
Não tentou acordar Yearnan ou Avyin, porém, nem esperar que acordassem. Decidido, se foi.
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O Voador
Fantasy(Sobre)vivendo pelas ruas de uma ilha pouco importante ao norte da grande Tormadelli, Ecco se vê entre o dilema de se tornar um aprendiz na Casa do Voador para seguir os passos de seu saudoso pai, ou fugir para longe dos domínios dos érujos. À medid...