Capítulo 27: O Trabalho, Enfim

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  Nunca poderia imaginar o quadro que se desenhava agora aos meus olhos. Não erabem o hospital de sangue, nem o instituto de tratamento normal da saúde orgânica. Erauma série de câmaras vastas, ligadas entre si e repletas de verdadeiros despojoshumanos.Singular vozerio pairava no ar. Gemidos, soluços, frases dolorosas pronunciadas aesmo... Rostos escaveirados, mãos esqueléticas, fácies monstruosas deixavamtransparecer terrível miséria espiritual.Tão angustiosas foram minhas primeiras impressões que procurei os recursos daprece para não fraquejar.Tobias, imperturbável, chamou velha servidora, que acudiu atenciosamente:- Vejo poucos auxiliares - disse admirado -, que aconteceu?- O Ministro Flácus - esclareceu a velhinha em tom respeitoso - determinou que amaioria acompanhasse os Samaritanos[4]para os serviços de hoje, nas regiões doUmbral.- Há que multiplicar energias - tornou ele sereno -, não temos tempo a perder.- Irmão Tobias!... Irmão Tobias!... por caridade! - gritou um ancião, gesticulando,agarrado ao leito, à maneira de louco - estou a sufocar! Isto é mil vezes pior que a mortena Terra... Socorro! socorro! quero sair, sair!... quero ar, muito ar!Tobias aproximou-se, examinou-o com atenção e perguntou:- Por que teria o Ribeiro piorado tanto?- Experimentou uma crise de grandes proporções - explicou a serva - e o27O Trabalho, EnfimAssistente Gonçalves esclareceu que a carga de pensamentos sombrios, emitidos pelosparentes encarnados, era a causa fundamental desse agravo de perturbação. Visto acharseainda muito fraco e sem ter acumulado força mental suficiente para desprender-se doslaços mais fortes do mundo, o pobre não tem resistido, como seria de desejar.Enquanto o generoso Tobias acariciava a fronte do enfermo, a serviçal prosseguiaesclarecendo:- Hoje, muito cedo, ele se ausentou sem consentimento nosso, a correrdesabaladamente. Gritava que lhe exigiam a presença no lar, que não podia esquecer aesposa e os filhos chorosos; que era crueldade retê-lo aqui, distante do lar. Lourenço eHermes esforçaram-se por fazê-lo voltar ao leito, mas foi impossível. Deliberei, então,aplicar alguns passes de prostração. Subtrai-lhe as forças e a motilidade, em benefíciodele mesmo.- Fez muito bem - acentuou Tobias, pensativo -, vou pedir providências contra aatitude da família. É preciso que ela receba maior bagagem de preocupações, para que nosdeixe o Ribeiro em paz.Fixei o doente procurando identificar-lhe a expressão íntima, verificando a legítimaexpressão de um dementado. Ele chamara Tobias como a criança que conhece o benfeitor,mas acusava profundo alheamento de quanto se dizia a seu respeito.Notando-me a admiração, o novo orientador explicou:- O pobrezinho permanece na fase de pesadelo, em que a alma pouco mais vê eouve que as aflições próprias. O homem, meu caro, encontra na vida real o que amontooupara si mesmo. Nosso Ribeiro deixou-se empolgar por numerosas ilusões.Eu quis indagar da origem dos seus padecimentos, conhecer- lhes a procedência eo histórico da situação; entretanto, recordei as criteriosas ponderações da mãe de Lísias,relativas à curiosidade, e calei. Tobias dirigiu ao enfermo generosas palavras de otimismoe esperança. Prometeu que iria providenciar recurso a melhoras, que mantivesse calmaem benefício próprio e que não se aborrecesse por estar preso à cama. Ribeiro, muitotrêmulo, rosto ceráceo, esboçou um sorriso muito triste e agradeceu com lágrimas.Seguimos através de numerosas filas de camas bem cuidadas, sentindo adesagradável exalação ambiente, oriunda, como vim a saber mais tarde, das emanaçõesmentais dos que ali se congregavam, com as dolorosas impressões da morte física e,muita vez, sob o império de baixos pensamentos.- Reservam-se estas câmaras - explicou o companheiro bondosamente - apenas aentidades de natureza masculina.- Tobias! Tobias... Estou morrendo à fome e sede! - bradava um estagiário.- Socorro, irmão!... - gritava outro.- Por amor de Deus!... Não suporto mais!... - exclamava ainda outro.Coração alanceado ante o sofrimento de tantas criaturas, não contive ainterrogação penosa:- Meu amigo, como é triste a reunião de tantos sofredores e torturados! Por queeste quadro angustioso?Tobias respondeu sem se perturbar:- Não devemos observar aqui somente dor e desolação. Lembre, meu irmão, queestes doentes estão atendidos, que já se retiraram do Umbral, onde tantas armadilhasaguardam os imprevidentes, descuidosos de si mesmos. Nestes pavilhões, pelo menos, jáse preparam para o serviço regenerador. Quanto às lágrimas que vertem, recordemos quedevem a si mesmos esses padecimentos. A vida do homem estará centralizada ondecentralize ele o próprio coração.E depois de uma pausa, em que parecia surdo a tantos clamores, acentuou:- São contrabandistas na vida eterna.- Como assim? - atalhei, interessado.O interlocutor sorriu e respondeu em voz firme:- Acreditavam que as mercadorias propriamente terrestres teriam o mesmo valornos planos do Espírito. Supunham que o prazer criminoso, o poder do dinheiro, a revoltacontra a lei e a imposição dos caprichos atravessariam as fronteiras do túmulo evigorariam aqui também, oferecendo-lhes ensejos a disparates novos. Foram negociantesimprevidentes. Esqueceram de cambiar as posses materiais em créditos espirituais. Nãoaprenderam as mais simples operações de câmbio no mundo. Quando iam a Londres,trocavam contos de réis por libras esterlinas; entretanto, nem com a certeza matemáticada morte carnal se animaram a adquirir os valores da espiritualidade. Agora... que fazer?Temos os milionários das sensações físicas transformados em mendigos da alma.Realíssimo! Tobias não podia ser mais lógico.Meu novo instrutor, após distribuir conforto e esclarecimento a granel, conduziumea vasta câmara anexa, em forma de grande enfermaria, notificando:- Vejamos alguns dos infelizes semimortos.Narcisa, a servidora, acompanhava-nos, solícita. Abriu-se a porta e quasecambaleei ante a surpresa angustiosa. Trinta e dois homens de semblante patibularpermaneciam inertes em leitos muito baixos, evidenciando apenas leves movimentos derespiração.Fazendo gesto significativo com o indicador, Tobias esclareceu:- Estes sofredores padecem um sono mais pesado que outros de nossos irmãosignorantes. Chamamos-lhes crentes negativos. Ao invés de aceitarem o Senhor, eramvassalos intransigentes do egoísmo; ao invés de crerem na vida, no movimento, notrabalho, admitiam somente o nada, a imobilidade e a vitória do crime. Converteram aexperiência humana em constante preparação para um grande sono e, como não tinhamqualquer ideia do bem, a serviço da coletividade, não há outro recurso senão dormiremlongos anos, em pesadelos sinistros.Não conseguia externar meu espanto.Muito cuidadoso, Tobias começou a aplicar passes de fortalecimento, sob meusolhos atônitos. Finda a operação nos dois primeiros, começaram ambos a expelir negrasubstância pela boca, espécie de vômito escuro e viscoso, com terríveis emanaçõescadavéricas.- São fluidos venenosos que segregam - explicou Tobias, muito calmo.Narcisa fazia o possível por atender prontamente à tarefa de limpeza, masdebalde. Grande número deles deixava escapar a mesma substância negra e fétida. Foientão, que, instintivamente, me agarrei aos petrechos de higiene e lancei-me ao trabalhocom ardor.A servidora parecia contente com o auxílio humilde do novo irmão, ao passo queTobias me dispensava olhares satisfeitos e agradecidos.O serviço continuou por todo o dia, custando-me abençoado suor, e nenhum amigodo mundo poderia avaliar a alegria sublimedo médico que recomeçava a educação de si mesmo, na enfermagem rudimentar.  

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