No dia imediato, após a oração do crepúsculo, Clarêncio me procurou emcompanhia do atencioso visitador.Fisionomia a irradiar generosidade, perguntou, abraçandome:- Como vai? Melhorzinho?Esbocei o gesto do enfermo que se vê acariciado na Terra, amolecendo as fibrasemotivas. No mundo, às vezes, o carinho fraterno é mal interpretado. Obedecendo aovelho vício, comecei a explicar-me, enquanto os dois benfeitores se sentavamcomodamente a meu lado:- Não posso negar que esteja melhor; entretanto, sofro intensamente. Muitasdores na zona intestinal, estranhas sensações de angústia no coração. Nunca supus fossecapaz de tamanha resistência, meu amigo. Ah! como tem sido pesada a minha cruz!...Agora que posso concatenar ideias, creio que a dor me aniquilou todas as forçasdisponíveis...Clarêncio ouvia, atencioso, demonstrando grande interesse pelas minhaslamentações, sem o menor gesto que denunciasse o propósito de intervir no assunto.Encorajado com essa atitude, continuei:- Além do mais, meus sofrimentos morais são enormes e inexprimíveis. Amainadaa tormenta exterior com os socorros recebidos, volto agora às tempestades íntimas. Queterá sido feito de minha esposa, de meus filhos? Teria o meu primogênito conseguidoprogredir, segundo meu velho ideal? E as filhinhas? Minha desventurada Zélia muitas vezesafirmou que morreria de saudades, se um dia eu lhe faltasse. Admirável esposa! Ainda lhesinto as lágrimas dos momentos derradeiros. Não sei desde quando vivo o pesadelo dadistância... Continuadas dilacerações roubaram-me a noção do tempo. Onde estará minhapobre companheira? Chorando junto às cinzas do meu corpo, ou nalgum recanto escurodas regiões da morte? Oh! minha dor é muito amarga! Que terrível destino o do homempenhorado no devotamento à família! Creio que raras criaturas terão padecido tantoquanto eu!... No planeta, vicissitudes, desenganos, doenças, incompreensões e amarguras,abafando escassas notas de alegria; depois, os sofrimentos da morte do corpo... Emseguida, martirizações no além-túmulo! Que será, então, a vida? Sucessivo desenrolar demisérias e lágrimas? Não haverá recurso à semeadura da paz? Por mais que desejefirmar-me no otimismo, sinto que a noção de infelicidade me bloqueia o espírito, comoterrível cárcere do coração. Que desventurado destino, generoso benfeitor!.Chegado a essa altura, o vendaval da queixa me conduzira o barco mental aooceano largo das lágrimas.Clarêncio, contudo, levantou-se sereno e falou sem afetação:- Meu amigo, deseja você, de fato, a cura espiritual?Ao meu gesto afirmativo, continuou:- Aprenda, então, a não falar excessivamente de si mesmo, nem comente aprópria dor. Lamentação denota enfermidade mental e enfermidade de curso laborioso etratamento difícil. É indispensável criar pensamentos novos e disciplinar os lábios.Somente conseguiremos equilíbrio, abrindo o coração ao Sol da Divindade. Classificar oesforço necessário de imposição esmagadora, enxergar padecimentos onde há lutaedificante, sói identificar indesejável cegueira d'alma. Quanto mais utilize o verbo pordilatar considerações dolorosas, no círculo da personalidade, mais duros se tornarão oslaços que o prendem a lembranças mesquinhas. O mesmo Pai que vela por sua pessoa,oferecendo-lhe teto generoso, nesta casa, atenderá aos seus parentes terrestres.Devemos ter nosso agrupamento familiar como sagrada construção, mas sem esquecerque nossas famílias são seções da Família universal, sob a Direção Divina. Estaremos aseu lado para resolver dificuldades presentes e estruturar projetos de futuro, mas nãodispomos do tempo para voltar a zonas estéreis de lamentação. Além disso, temos, nestacolônia, o compromisso de aceitar o trabalho mais áspero como bênção de realização,considerando que a Providência desborda amor, enquanto nós vivemos onerados de dívidas.Se deseja permanecer nesta casa de assistência, aprenda a pensar com justeza.Nesse ínterim, secara-se-me o pranto e, chamado a brios pelo generoso instrutor,assumi diversa atitude, embora envergonhado da minha fraqueza.- Não disputava você, na carne - prosseguiu Clarêncio, bondoso -, as vantagensnaturais, decorrentes das boas situações? Não estimava a obtenção de recursos lícitos,ansioso de estender benefícios aos entes amados? Não se interessava pelasremunerações justas, pelas expressões de conforto, com possibilidades de atender àfamília? Aqui, o programa não é diferente. Apenas divergem os detalhes. Nos círculoscarnais, a convenção e a garantia monetária; aqui, o trabalho e as aquisições definitivasdo espírito imortal. Dor, para nós, significa possibilidade de enriquecer a alma; a lutaconstitui caminho para a divina realização. Compreendeu a diferença? As almas débeis,ante o serviço, deitam-se para se queixarem aos que passam; as fortes, porém, recebemo serviço como patrimônio sagrado, na movimentação do qual se preparam, a caminho daperfeição. Ninguém lhe condena a saudade justa, nem pretende estancar sua fonte desentimentos sublimes. Acresce notar, todavia, que o pranto da desesperação não edifica obem. Se ama, em verdade, a família terrena, é preciso bom ânimo para lhe ser útil.Fez-se longa pausa. A palavra de Clarêncio levantara-me para elucubrações maissadias.Enquanto meditava a sabedoria da valiosa advertência, meu benfeitor, qual o paique esquece a leviandade dos filhos para recomeçar serenamente a lição, tornou aperguntar com um belo sorriso:- Então, como passa? Melhor?Contente por me sentir desculpado, à maneira da criança que deseja aprender,respondi, confortado:- Vou bem melhor, para melhor compreender a Vontade Divina.