Um ano se passou em trabalhos construtivos, com imensa alegria para mim.Aprendera a ser útil, encontrara o prazer do serviço, experimentando crescente júbilo econfiança.Até ali, não voltara ao lar terrestre, apesar do imenso desejo que me espicaçava ocoração. As vezes, intentava pedir concessões, nesse particular, mas alguma coisa metolhia. Não recebera auxílio adequado, não contava, ali, com o carinho e apreço de todosos companheiros? Reconhecia, portanto, que, se houvesse proveito, de há muito teria sidoencaminhado ao velho ambiente doméstico. Cumpria, pois, aguardar a palavra de ordem.Além disso, não obstante desdobrar atividades na Regeneração, o Ministro Clarênciocontinuava a responsabilizar-se pela minha permanência na colônia. A senhora Laura e opróprio Tobias não se cansavam de me lembrar esse fato. Por diversas vezes tinhadefrontado o generoso Ministro do Auxílio e, no entanto, mantinha- se ele sempresilencioso sobre o assunto. Aliás, Clarêncio nunca modificava a atitude reservada, nodesempenho das obrigações concernentes à sua autoridade. Apenas pelo Natal, quando meencontrara nos festejos da Elevação, tocara levemente no assunto, adivinhando-me assaudades da esposa e dos filhinhos. Comentara as alegrias da noite e asseverara nãoandar longe o dia em que me acompanharia ao ninho familiar. Agradeci, comovidamente,esperando, cheio de bom ânimo. Entretanto, atingíramos setembro de 1940, sem que vissea realização de meus desejos.Confortava-me, porém, a certeza de haver preenchido todo o meu tempo nasCâmaras de Retificação, com serviço útil. Não descansara. Nossas tarefas prosseguiam46Sacrifício de Mulhersempre, sem solução de continuidade.Habituara-me a cuidar dos enfermos, a interpretar-lhes os pensamentos. Nãoperdia de vista a pobre Elisa, encaminhando-a, de maneira indireta, a melhores tentames.À medida, porém, que se consolidava meu equilíbrio emocional, intensificava-semea ansiedade de rever os meus.A saudade doía fundo. Em compensação, de longe em longe era visitado por minhamãe, que nunca me abandonou à própria sorte, embora permanecesse em círculos maisaltos.A última vez que nos avistáramos, ela me disse que tencionava cientificar-me deprojetos novos. Aquela atitude maternal de suave conformação nos sofrimentos moraisque lhe feriam a alma sensível, comovera-me profundamente. Que novas resoluções teriatomado? Intrigado, esperei-lhe a visita, ansioso de conhecer- lhe os planos. Com efeito,nos primeiros dias de setembro de 1940, minha mãe veio às Câmaras e, depois dassaudações carinhosas, comunicou-me o propósito de voltar à Terra. Em tom afetuoso,explicou o projeto. Mas, surpreendido e discordando de semelhante decisão, protestei:- Não concordo. Voltar a senhora à carne? Por quê? Internar- se, de novo, nocaminho escuro, sem necessidade imediata?Mostrando nobre expressão de serenidade, minha mãe ponderou:- Não consideras a angustiosa condição de teu pai, meu filho? Há muitos anostrabalho para reerguê-lo e meus esforços têm sido improfícuos. Laerte é hoje um cépticode coração envenenado. Não poderia persistir em semelhante posição, sob pena demergulhar em abismos mais fundos. Que fazer, André? Terias coragem de revê-lo em talsituação, esquivando-te ao socorro justo?- Não - respondi, impressionado -; trabalharia por auxiliá-lo; mas a senhora poderáajudá-lo mesmo daqui.- Não duvido. No entanto, os espíritos que amam, verdadeiramente, não se limitama estender as mãos de longe. De que nos valeria toda a riqueza material, se nãopudéssemos estendê-la aos entes amados? Poderíamos, acaso, residir num paláciorelegando os filhinhos à intempérie? Não posso ficar a distância. Já que poderei contarcontigo aqui, doravante reunir-me-ei a Luísa a fim de auxiliar teu pai a reencontrar ocaminho certo.Pensei, pensei, e redargui:- Insistiria, no entanto, com a senhora. Não haverá meios de evitar essacontingência?- Não. Não seria possível. Estudei detidamente o assunto. Meus superioreshierárquicos foram acordes no conselho. Não posso trazer o inferior para o superior, masposso fazer o contrário. Que me resta, senão isso? Não devo hesitar um minuto. Tenhoem ti o amparo do futuro. Não te percas, pois, meu filho, e auxilia tua mãe, quandopuderes transitar entre as esferas que nos separam da crosta. Entrementes, zela por tuasirmãs, que talvez ainda se encontrem nas sombras do Umbral, em trabalho ativo depurgação. Estarei novamente no mundo, em breves dias, onde me encontrarei com Laertepara os serviços que o Pai nos confiar.- Mas - indaguei - como se encontra ele com a senhora? Em espírito?- Não - disse minha mãe com significativa expressão fisionômica. Com acolaboração de alguns amigos, localizei-o na Terra, a semana passada, preparando-lhe areencarnação imediata sem que ele nos identificasse o auxílio direto. Quis fugir dasmulheres que ainda o subjugam, talvez com razão, e aproveitamos essa disposição, parajungi-lo à nova situação carnal.- Mas isso é possível? E a liberdade individual?Minha mãe sorriu, algo triste, e obtemperou:- Há reencarnações que funcionam como drásticos. Ainda que o doente não sesinta corajoso, existem amigos que o ajudam a sorver o remédio santo, embora muitoamargo. Relativamente à liberdade irrestrita, a alma pode invocar esse direito somentequando compreenda o dever e o pratique. Quanto ao mais, é indispensável reconhecer queo devedor é escravo do compromisso assumido. Deus criou o livre-arbítrio, nós criamos afatalidade. É preciso quebrar, portanto, as algemas que fundimos para nós mesmos.Enquanto me perdia em graves pensamentos, continuou ela, retomando asanteriores observações:- As infelizes irmãs que o perseguem, entretanto, não o abandonam e, não fosse aProteção Divina por intermédio de nossos guardas espirituais, talvez lhe subtraíssem aoportunidade da nova reencarnação.- Deus meu! - exclamei. - Será então possível? Estamos à mercê do mal até esseponto? Simples joguetes em mãos dos inimigos?- Essas interrogações, meu filho - esclareceu minha genitora, muito calma -,devem pairar em nossos corações e em nossos lábios, antes de contrairmos qualquerdébito e antes de transformarmos irmãos em adversários para o caminho. Não tomesempréstimos à maldade...- E essas mulheres? - indaguei. Que será feito dessas infelizes?Minha mãe sorriu e respondeu:- Serão minhas filhas daqui a alguns anos. É preciso não esqueceres que irei aomundo em auxílio de teu pai. Ninguém ajuda eficientemente, intensificando as forçascontrárias, como não se pode apagar na Terra um incêndio com petróleo. É indispensávelamar, André! Os que descreem perdem o rumo verdadeiro, peregrinando pelo deserto; osque erram se desviam da estrada real, mergulhando no pântano. Teu pai é hoje um cépticoe essas pobres irmãs suportam pesados fardos na lama da ignorância e da ilusão. Emfuturo não distante, colocarei todos eles em meu regaço materno, realizando minha novaexperiência.E, olhos brilhantes e úmidos, como se estivesse a contemplar horizontes doporvir, rematou:- E mais tarde... quem sabe? talvez regresse a "Nosso Lar", cercada de outrosafetos sacrossantos, para uma grande festividade de alegria, amor e união...Identificando-lhe o espírito de renúncia, ajoelhei-me e beijei- lhe as mãos.Desde aquela hora, minha mãe não era apenas minha mãe. Era muito mais queisso. Era a mensageira do Amparo, que sabia converter verdugos em filhos do seucoração, para que eles retomassem o caminho dos filhos de Deus.