- A palestra, senhora Laura - exclamei com interesse -, sugere numerosas interrogações, relevar-me-á a curiosidade, o abuso...- Não diga isso - retrucou, bondosa -, pergunte sempre. Não estou em condiçõesde ensinar; todavia, é sempre fácil informar.Rimo-nos da observação e indaguei em seguida:- Como se encara o problema da propriedade na colônia? Esta casa, por exemplo,pertence-lhe?Ela sorriu e esclareceu:- Tal como se dá na Terra, a propriedade aqui é relativa. Nossas aquisições sãofeitas à base de horas de trabalho. O bônus- hora, no fundo, é o nosso dinheiro. Quaisquerutilidades são adquiridas com esses cupons, obtidos por nós mesmos, a custa de esforçoe dedicação. As construções em geral representam patrimônio comum, sob controle daGovernadoria; cada família espiritual, porém, pode conquistar um lar (nunca mais que um),apresentando trinta mil bônus-hora, o que se pode conseguir com algum tempo de serviço.Nossa morada foi conquistada pelo trabalho perseverante de meu esposo, que veio para aesfera espiritual muito antes de mim. Dezoito anos estivemos separados pelos laçosfísicos, mas sempre unidos pelos elos espirituais. Ricardo, porém, não descansou.Recolhido ao "Nosso Lar", depois de certo período de extremas perturbações, compreendeuimediatamente a necessidade do esforço ativo, preparando-nos um ninho para o futuro.Quando cheguei, estreamos a habitação que ele organizara com esmero, acentuando-senossa ventura. Desde então, meu esposo ministrou-me conhecimentos novos. Minhas lutasna viuvez haviam sido intensas. Muito moça ainda, com os filhos tenros, tive de enfrentar21Continuando a palestraserviços rudes. A custa de testemunhos difíceis, proporcionei aos rebentos de nossa uniãoos valores educativos, de que eu podia dispor, habituando-os, porém, muito cedo, aostrabalhos árduos. Compreendi, depois, que a existência laboriosa me livrara das indecisõese angústias do Umbral, por colocar-me a coberto de muitas e perigosas tentações. O suordo corpo ou a preocupação justa, nos campos de atividade honesta, constituem valiososrecursos para a elevação e defesa da alma. Reencontrar Ricardo, tecer novo ninho deafetos, representava o céu para mim. Durante anos consecutivos, vivemos a vida deperene ventura, trabalhando por nossa evolução, unindo-nos cada vez mais e cooperandono progresso efetivo dos que nos são afins. Com o correr do tempo, Lísias, Iolanda eJudite reuniram-se a nós, aumentando nossa felicidade.Após ligeiro intervalo, em que parecia meditar, minha interlocutora prosseguiu emtom grave:- Mas a esfera do globo nos esperava. Se o presente estava cheio de alegria, opassado chamava a contas, para que o futuro se harmonizasse com a lei eterna. Nãopodíamos pagar à Terra com bônus-hora e sim com o suor honrado, fruto de trabalhos.Dada a nossa boa-vontade, aclarava-se-nos a visão, relativamente ao pretérito doloroso. Alei do ritmo exigia, então, nossa volta.Aquelas afirmativas causavam-me viva impressão. Era a primeira vez que se feriatão fundo aos meus ouvidos, na colônia, o assunto referente a encarnações pregressas.- Senhora Laura - exclamei, interrompendo-a -, permita, por obséquio, um aparte.Perdoe a curiosidade; no entanto, até agora, ainda não pude conhecer mais detidamente oque se relaciona com o meu passado espiritual. Não estou isento dos laços físicos? Nãoatravessei o rio da morte? A senhora recordou o passado, logo após sua vinda, ou esperouo concurso do tempo?- Esperei-o - replicou, sorridente -; antes de tudo, é indispensável nos despojarmosdas impressões físicas. As escamas da inferioridade são muito fortes. É preciso grandeequilíbrio para podermos recordar, edificando. Em geral, todos temos erros clamorosos,nos ciclos da vida eterna. Quem lembra o crime cometido costuma considerar-se o maisdesventurado do Universo; e quem recorda o crime de que foi vítima, considera-se emconta de infeliz, do mesmo modo. Portanto, somente a alma muito segura de si recebetais atributos como realização espontânea. As demais são devidamente controladas nodomínio das reminiscências e, se tentam burlar esse dispositivo da lei, não raro tendemao desequilíbrio e à loucura.- Mas a senhora recordou o passado de maneira natural? - perguntei.- Explico-me - respondeu bondosamente -; quando se me aclarou a visão interior,as lembranças vagas me causavam perturbações de vulto. Coincidiu que meu maridopartilhava o mesmo estado d'alma. Resolvemos ambos consultar o assistente Longobardo.Esse amigo, depois de minucioso exame das nossas impressões, nos encaminhouaos magnetizadores do Ministério do Esclarecimento. Recebidos com carinho, tivemosacesso em primeiro lugar à Seção do Arquivo, onde todos nós temos anotaçõesparticulares. Aconselharam-nos os técnicos daquele Ministério a ler nossas própriasmemórias, durante dois anos, sem prejuízo de nossa tarefa do Auxílio, abrangendo operíodo de três séculos. O chefe do serviço de Recordações não nos permitiu a leitura defases anteriores, declarando-nos incapazes de suportar as lembranças correspondentes aoutras épocas.- E bastou a leitura para que se sentisse na posse das reminiscências? - atalhei,curioso.- Não. A leitura apenas informa. Depois de longo período de meditação paraesclarecimento próprio, e como surpresas indescritíveis, fomos submetidos adeterminadas operações psíquicas, a fim de penetrar os domínios emocionais dasrecordações. Os espíritos técnicos no assunto nos aplicaram passes no cérebro,despertando certas energias adormecidas... Ricardo e eu ficamos, então, senhores detrezentos anos de memória integral. Compreendemos, então, quão grande é ainda o nossodébito para com as organizações do planeta!...- E onde está nosso irmão Ricardo? Como estimaria conhecê-lo!... - exclamei sobforte impressão.A genitora de Lísias meneou significativamente a cabeça e murmurou:- Em vista de nossas observações referentes ao passado, combinamos novoencontro nas esferas da crosta. Temos trabalho, muito trabalho, na Terra. Desse modo,Ricardo partiu há três anos. Quanto a mim, seguirei dentro de breves dias. Aguardoapenas a chegada de Teresa, para deixá-la junto aos nossos.E de olhar vago, como se a mente estivesse muito longe, ao lado da filha aindaretida na Terra, a senhora Laura acentuou:- A mãe de Eloísa não tardará. A passagem dela através do Umbral será somentede algumas horas, em vista dos seus profundos sacrifícios, desde a infância. Pelo muitoque sofreu não precisará dos tratamentos da Regeneração. Poderei, portanto, transmitirlheminhas obrigações no Auxílio e partir sossegada. O Senhor não nos esquecerá.