Capítulo 22: O Bônus-Hora

35 0 0
                                    

  Notando que a senhora Laura entristecera subitamente ao recordar o marido,modifiquei o rumo da palestra, interrogando:- Que me diz do bônus-hora? Trata-se de algum metal amoedado?Minha interlocutora perdeu o aspecto cismativo, a que se recolhera, e replicou,atenciosa:- Não é propriamente moeda, mas ficha de serviço individual, funcionando comovalor aquisitivo.- Aquisitivo? - perguntei abruptamente.- Explico-me - respondeu a bondosa senhora -; em "Nosso Lar" a produção devestuário e alimentação elementares pertence a todos em comum. Há serviços centraisde distribuição na Governadoria e departamentos do mesmo trabalho nos Ministérios. Oceleiro fundamental é propriedade coletiva.Ante meu gesto silencioso de espanto, acentuou:- Todos cooperam no engrandecimento do patrimônio comum e dele vivem. Osque trabalham, porém, adquirem direitos justos. Cada habitante de "Nosso Lar" recebeprovisões de pão e roupa, no que se refere ao estritamente necessário; mas os que seesforçam na obtenção do bônus-hora conseguem certas prerrogativas na comunidadesocial. O espírito que ainda não trabalha, poderá ser abrigado aqui; no entanto, os quecooperem podem ter casa própria. O ocioso vestirá, sem dúvida; mas o operário dedicadovestirá o que melhor lhe pareça; compreendeu? Os inativos podem permanecer noscampos de repouso, ou nos parques de tratamento, favorecidos pela intercessão deamigos; entretanto, as almas operosas conquistam o bônus-hora e podem gozar a22O Bônus-Horacompanhia de irmãos queridos, nos lugares consagrados ao entretenimento, ou o contatode orientadores sábios, nas diversas escolas dos Ministérios em geral. Precisamosconhecer o preço de cada nota de melhoria e elevação. Cada um de nós, os quetrabalhamos, deve dar, no mínimo, oito horas de serviço útil, nas vinte e quatro de que odia se constitui. Os programas de trabalho, porém, são numerosos e a Governadoriapermite quatro horas de esforço extraordinário, aos que desejem colaborar no trabalhocomum, de boa-vontade. Desse modo, há muita gente que consegue setenta e dois bônushora,por semana, sem falar dos serviços sacrificiais, cuja remuneração é duplicada e, àsvezes, triplicada.- Mas, é esse o único título de remuneração? - perguntei.- Sim, é o padrão de pagamento a todos os colaboradores da colônia, não só naadministração, como também na obediência.Lembrando as organizações terrestres, indaguei, espantado:- Todavia, como conciliar semelhante padrão com a natureza do serviço? Oadministrador ganhará oito bônus-hora na atividade normal do dia, e o operário dotransporte receberá a mesma coisa? Não é o trabalho do primeiro mais elevado que o dosegundo?A senhora sorriu à pergunta e explicou:- Tudo é relativo. Se, na orientação ou na subalternidade, o trabalho é de sacrifíciopessoal, a expressão remunerativa é justamente multiplicada. Examinando, porém, maisdetidamente a sua pergunta, precisamos, antes de mais nada, esquecer determinadosprejuízos da Terra. A natureza do serviço é problema dos mais importantes; contudo, naprópria esfera da crosta é que o assunto apresenta solução mais difícil. A maioria doshomens encarnados está simplesmente ensaiando o espírito de serviço e aprendendo atrabalhar nos diversos setores da vida humana. Por isso mesmo, é imprescindível fixar asremunerações terrestres com maior atenção. Todo o ganho externo do mundo é lucrotransitório. Vemos trabalhadores obcecados pela questão de ganhar, transmitindo fortunasvultosas à inconsciência e à dissipação; outros amontoam expressões bancárias que lhesservem de martírio pessoal e de ruína à família. Por outro lado, é indispensável considerarque setenta por cento dos administradores terrenos não pesam os deveres morais quelhes competem e que a mesma porcentagem pode ser adjudicada a quantos foramchamados à subordinação. Vivem, quase todos, a confessar ausência do impulsovocacional, recebendo embora os proventos comuns aos cargos que ocupam. Governos eempresas pagam a médicos que se entregam à exploração de interesses outros e aoperários que matam o tempo. Onde, aí, a natureza de serviço? Há técnicos de indústriaeconômica que nunca prezaram integralmente a obrigação que lhes assiste e valem-se deleis magnânimas, à maneira de moscas venenosas no pão sagrado, exigindo abonos,facilidades e aposentadorias. Creia, porém, que todos pagarão muito caro a displicência.Parece ainda distante o tempo em que os institutos sociais poderão determinar aqualidade de serviço dos homens, porque, para o plano espiritual superior, não seespecificará teor de trabalho, sem a consideração dos valores morais despendidos.Essas palavras despertavam-me para concepções novas. Percebendo-me a sede deinstrução, a interlocutora continuou:- O verdadeiro ganho da criatura é de natureza espiritual e o bônus-hora, emnossa organização, modifica-se em valor substancial, segundo a natureza dos nossosserviços. No Ministério da Regeneração, temos o Bônus-Hora-Regeneração; no Ministériodo Esclarecimento, o Bônus-Hora-Esclarecimento, e assim por diante. Ora, examinando oprovento espiritual, é razoável que a documentação de trabalho revele a essência doserviço. As aquisições fundamentais constituem-se de experiência, educação,enriquecimento de bênçãos divinas, extensão de possibilidades. Nesse prisma, os fatoresassiduidade e dedicação representam, aqui, quase tudo. Em geral, em nossa cidade detransição, a maioria prepara-se com vistas à necessidade de regresso aos círculoscarnais. Examinando esse princípio, é natural que o homem que empregou cinco mil horas,em serviços regeneradores, tenha efetuado esforço sublime, a benefício de si mesmo; oque despendeu seis mil horas de atividade, no Ministério do Esclarecimento, estará maissábio. Poderemos gastar os bônus-hora conquistados; entretanto, é mais valioso ainda oregistro individual da contagem de tempo de serviço útil, que nos confere direito apreciosos títulos.Semelhantes instruções interessavam-me profundamente.- Poderemos, porém, gastar nossos bônus-hora a favor dos amigos? - indagueicurioso.- Perfeitamente - disse ela -; poderemos repartir as bênçãos de nosso esforçocom quem nos aprouver. Isto é direito inalienável do trabalhador fiel. Contam-se pormilhares as pessoas favorecidas em "Nosso Lar", pela movimentação da amizade e doestímulo fraternal.A essa altura, a genitora de Lísias sorriu e observou:- Quanto maior a contagem do nosso tempo de trabalho, maiores intercessõespodemos fazer. Compreendemos, aqui, que nada existe sem preço e que para receber éindispensável dar alguma coisa. Pedir, portanto, é ocorrência muito significativa naexistência de cada um. Somente poderão rogar providências e dispensar obséquio osportadores de títulos adequados, entendeu?- E o problema da herança? - inquiri de repente.- Não temos aqui demasiadas complicações - respondeu a senhora Laura, sorrindo.Vejamos, por exemplo, o meu caso. Aproxima-se o tempo do meu regresso aos planos dacrosta. Tenho comigo três mil Bônus-Hora-Auxílio, no meu quadro de economia pessoal.Não posso legá-los a minha filha que está a chegar, por- que esses valores serãorevertidos ao patrimônio comum, permanecendo minha família apenas com o direito deherança ao lar; no entanto, minha ficha de serviço autoriza-me a interceder por ela epreparar-lhe aqui trabalho e concurso amigo, assegurando-me, igualmente, o valioso auxíliodas organizações de nossa colônia espiritual, durante minha permanência nos círculoscarnais. Nesse cômputo, deixo de referir-me ao lucro maravilhoso que adquiri no capítuloda experiência, nos anos de cooperação no Ministério do Auxílio. Volto à Terra, investidade valores mais altos e demonstrando qualidades mais nobres de preparação ao êxitodesejado.Ia prorromper em exclamações admirativas, referentes ao processo simples deganhar, aproveitar, cooperar e servir, confrontando aquelas soluções com os princípiosimperantes no planeta, mas um brando burburinho aproximou-se da casa. Antes quepudesse emitir qualquer observação, a senhora Laura murmurou, satisfeita:- Nossos queridos estão de volta.E levantou-se para atender.  

Nosso LarWhere stories live. Discover now