No dia imediato, muito cedo, fiz leve refeição em companhia de Lísias efamiliares.Antes que os filhos se despedissem, rumo ao trabalho do Auxílio, a senhora Lauraencorajou-me o espírito hesitante, dizendo, bem-humorada:- Já lhe arranjei companhia para hoje. Nosso amigo Rafael, funcionário daRegeneração, passará por aqui, a meu pedido. Poderá aceitar-lhe a companhia em direçãoao novo Ministério. Rafael é antiga relação de nossa família e apresenta-lo-á, em meunome, ao Ministro Genésio.Não poderia explicar o contentamento que me dominou a alma. Estava radiante.Agradeci, comovido, sem encontrar palavras que definissem meu júbilo. Lísias, por suavez, demonstrou grande alegria. Abraçou-me efusivamente antes de sair, sensibilizandomeo coração. Ao beijar o filho, a senhora Laura recomendou:- Você, Lísias, avise ao Ministro Clarêncio que comparecerei ao expediente, logoque entregue nosso amigo aos cuidados de Rafael.Comovidíssimo, eu não conseguia agradecer tamanha dedicação.Ficando a sós, a desvelada genitora do meu amigo dirigiu-me a palavra carinhosa:- Meu irmão, permita-me algumas indicações para os seus novos caminhos. Creioque a colaboração maternal sempre vale alguma coisa e, já que sua mãezinha não resideem "Nosso Lar", reivindico a satisfação de orientá-lo neste momento.- Gratíssimo - respondi, sensibilizado -; nunca saberei traduzir meu25Generoso Alvitrereconhecimento à sua atenção.Sorriu a bondosa senhora, acrescentando:- Estou informada de que pediu trabalho há algum tempo...- Sim, sim... - esclareci, relembrando as elucidações de Clarêncio.- Sei, igualmente, que não o obteve de pronto, recebendo, mais tarde, a necessáriaautorização para visitar os Ministérios que nos ligam mais fortemente à Terra.Esboçando significativa expressão fisionômica, a boa senhora acrescentou:- É justamente neste sentido que lhe ofereço minhas sugestões humildes. Falocom o direito de experiência maior. Detendo, agora, essa autorização, abandone, quantolhe seja possível, os propósitos de mera curiosidade. Não deseje personificar a mariposa,de lâmpada em lâmpada. Sei que seu espírito de pesquisa intelectual é muito forte.Médico estudioso, apaixonado de novidades e enigmas, ser-lhe-á muito fácil deslizar naposição nova. Não esqueça que poderá obter valores mais preciosos e dignos que asimples análise das coisas. A curiosidade, mesmo sadia, pode ser zona mental muitointeressante, mas perigosa, por vezes. Dentro dela, o espírito desassombrado e lealconsegue movimentar-se em atividades nobilitantes; mas os indecisos e inexperientespodem conhecer dores amargas, sem proveito para ninguém. Clarêncio ofereceu-lheingresso nos Ministérios, começando pela Regeneração. Pois bem: não se limite aobservar. Ao invés de albergar a curiosidade, medite no trabalho e atire-se a ele naprimeira ocasião que se ofereça. Surgindo ensejo nas tarefas da Regeneração, não sepreocupe em alcançar o espetáculo dos serviços nos demais Ministérios. Aprenda aconstruir o seu círculo de simpatias e não olvide que o espírito de investigação devemanifestar-se após o espírito de serviço. Pesquisar atividades alheias, sem testemunhosno bem, pode ser criminoso atrevimento. Muitos fracassos, nas edificações do mundo,originam-se de semelhante anomalia. Todos querem observar, raros se dispõem a realizar.Somente o trabalho digno confere ao espírito o merecimento indispensável a quaisquerdireitos novos. O Ministério da Regeneração está repleto de lutas pesadas, localizando-seali a região mais baixa de nossa colônia espiritual. Saem de lá todas as turmas destinadasaos serviços mais árduos. Não se considere, porém, humilhado por atender às tarefashumildes. Lembro-lhe que em todas as nossas esferas, desde o planeta até os núcleosmais elevados das zonas superiores, em nos referindo à Terra, o Maior Trabalhador é opróprio Cristo e que Ele não desdenhou o serrote pesado de uma carpintaria. O MinistroClarêncio autorizou-o, gentilmente, a conhecer, visitar e analisar; mas pode, comoservidor de bom senso, converter observações em tarefa útil. É possível receber alguémdos que administram, quando peça determinado gênero de atividade reservada, comjustiça, aos que muito hão lutado e sofrido no capítulo da especialização; mas ninguém serecusará a aceitar o concurso do espírito de boa- vontade, que ama o trabalho pelo prazerde servir.Meus olhos estavam úmidos. Aquelas palavras, pronunciadas com meiguicematernal, caíam-me no coração como bálsamo precioso. Poucas vezes sentira na vidatanto interesse fraternal pela minha sorte. Semelhante conselho calava-me no fundod'alma e, como se desejasse temperar com amor os criteriosos conceitos, a senhoraLaura acrescentou com inflexão carinhosa:- A ciência de recomeçar é das mais nobres que nosso espírito pode aprender. Sãomuito raros os que a compreendem nas esferas da crosta. Temos escassos exemploshumanos, nesse sentido. Lembremos, contudo, o de Paulo de Tarso, Doutor do Sinédrio,esperança de uma raça, pela cultura e pela mocidade, alvo de geral atenção emJerusalém, que voltou, um dia, ao deserto para recomeçar a experiência humana, comotecelão rústico e pobre.Não pude mais. Tomei-lhe as mãos, como filho agradecido, e cobri-as do prantojubiloso que me inundava o coração.A genitora de Lísias, agora de olhos fixos no horizonte, murmurou:- Muito grata, meu irmão. Creio que você não veio a esta casa atendendo aomecanismo da casualidade. Estamos todos entrelaçados em teia de amizade secular.Brevemente voltarei ao círculo da carne; entretanto, continuaremos sempre unidos pelocoração. Espero vê-lo animado e feliz, antes de minha partida. Faça desta casa a suahabitação. Trabalhe e anime-se, confiando em Deus.Levantei os olhos rasos d'água, fixei-lhe a expressão carinhosa, experimentei afelicidade que nasce dos afetos puros e tive impressão de conhecer minha interlocutora,de velhos tempos, embora tentasse, debalde, identificar-lhe o carinho nas reminiscênciasmais distantes. Quis beijá-la muitas vezes, com o enternecimento filial do coração, mas,nesse instante, alguém bateu à porta.Fitou-me a senhora Laura, mostrando indefinível ternura maternal e falou:- É Rafael que vem buscá-lo. Vá, meu amigo, pensando em Jesus. Trabalhe para obem dos outros, para que possa encontrar seu próprio bem.