Capítulo 2: Clarêncio

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  "Suicida! Suicida! Criminoso! Infanos dias longos que se seguiram à delicada operação dos intestinos. Sentia, no cursodessas reminiscências, o contato do termômetro, o pique desagradável da agulha deinjeções e, por fim, a última cena que precedera o grande sono: minha esposa aindajovem e os três filhos contemplando-me, no terror da eterna separação. Depois... odespertar na paisagem úmida e escura e a grande caminhada que parecia sem-fim.Por que a pecha de suicídio, quando fora compelido a abandonar a casa, a famíliae o doce convívio dos meus? O homem mais forte conhecerá limites à resistênciaemocional. Firme e resoluto a princípio, comecei por entregar-me a longos períodos dedesânimo e, longe de prosseguir na fortaleza moral, por ignorar o próprio fim, senti que aslágrimas longamente represadas visitavam-me com mais frequência, extravasando docoração.A quem recorrer? Por maior que fosse a cultura intelectual trazida do mundo, nãopoderia alterar, agora, a realidade da vida. Meus conhecimentos, ante o infinito,semelhavam-se a pequenas bolhas de sabão levadas ao vento impetuoso que transformaas paisagens. Eu era alguma coisa que o tufão da verdade carreava para muito longe.Entretanto, a situação não modificava a outra realidade do meu ser essencial. Perguntandoa mim mesmo se não enlouquecera, encontrava a consciência vigilante, esclarecendo- meque continuava a ser eu mesmo, com o sentimento e a cultura colhidos na experiênciamaterial. Persistiam as necessidades fisiológicas, sem modificação. Castigava-me a fometodas as fibras e, nada obstante, o abatimento progressivo não me fazia cairdefinitivamente em absoluta exaustão. De quando em quando, deparavam-se-me verdurasque me pareciam agrestes, em torno de humildes filetes d'água a que me atiravasequioso. Devorava as folhas desconhecidas, colava os lábios à nascente turva, enquantomo permitiam as forças irresistíveis, a impelirem-me para frente. Muita vez suguei alama da estrada, recordei o antigo pão de cada dia, vertendo copioso pranto. Não raro, eraimprescindível ocultar-me das enormes manadas de seres animalescos, que passavam embando, quais feras insaciáveis. Eram quadros de estarrecer! acentuava-se o desalento. Foiquando comecei a recordar que deveria existir um Autor da Vida, fosse onde fosse. Essaideia confortou-me. Eu, que detestara as religiões no mundo, experimentava agora anecessidade de conforto místico. Médico extremamente arraigado ao negativismo daminha geração, impunha-se-me atitude renovadora. Tornava-se imprescindível confessar afalência do amor-próprio, a que me consagrara orgulhoso.E, quando as energias me faltaram de todo, quando me senti absolutamentecolado ao lodo da Terra, sem forças para reerguer- me, pedi ao Supremo Autor daNatureza me estendesse mãos paternais, em tão amargurosa emergência.Quanto tempo durou a rogativa? Quantas horas consagrei à súplica, de mãospostas,imitando a criança aflita? Apenas sei que a chuva das lágrimas me lavou o rosto;que todos os meus sentimentos se concentraram na prece dolorosa. Estaria, então,completamente esquecido? Não era, igualmente, filho de Deus, embora não cogitasse deconhecer-lhe a atividade sublime quando engolfado nas vaidades da experiência humana?Por que não me perdoaria o Eterno Pai, quando providenciava ninho às aves inconscientese protegia, bondoso, a flor tenra dos campos agrestes?Ah! é preciso haver sofrido muito, para entender todas as misteriosas belezas daoração; é necessário haver conhecido o remorso, a humilhação, a extrema desventura,para tomar com eficácia o sublime elixir de esperança. Foi nesse instante que as neblinasespessas se dissiparam e alguém surgiu, emissário dos Céus. Um velhinho simpático mesorriu paternalmente. Inclinou- se, fixou nos meus os grandes olhos lúcidos, e falou:- Coragem, meu filho! O Senhor não te desampara.Amargurado pranto banhava-me a alma toda. Emocionado, quis traduzir meu júbilo,comentar a consolação que me chegava, mas, reunindo todas as forças que me restavam,pude apenas inquirir:- Quem sois, generoso emissário de Deus?O inesperado benfeitor sorriu bondoso e respondeu:- Chama-me Clarêncio, sou apenas teu irmão.E, percebendo o meu esgotamento, acrescentou:- Agora, permanece calmo e silencioso. É preciso descansar para reaver energias.Em seguida, chamou dois companheiros que guardavam atitude de servosdesvelados e ordenou:- Prestemos ao nosso amigo os socorros de emergência.Alvo lençol foi estendido ali mesmo, à guisa de maca improvisada, aprestando-seambos os cooperadores a transportarem-me, generosamente.Quando me alçavam, cuidadosos, Clarêncio meditou um instante e esclareceu,como quem recorda inadiável obrigação:- Vamos sem demora. Preciso atingir "Nosso Lar" com a presteza possível.  

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