Imitando a criança que se conduz pelos passos dos benfeitores, cheguei à minhacidade, com a sensação indescritível do viajante que torna ao berço natal depois de longaausência.Sim, a paisagem não se modificara de maneira sensível. As velhas árvores dobairro, o mar, o mesmo céu, o mesmo perfume errante. Embriagado de alegria, não maisnotei a expressão fisionômica da senhora Laura, que denunciava extrema preocupação, edespedi-me da pequena caravana, que seguiria adiante.Clarêncio abraçou-me e falou:- Você tem uma semana ao seu dispor. Passarei aqui diariamente para revê-lo,atento aos cuidados que devo consagrar aos problemas da reencarnação de nossa irmã. Sequiser ir a "Nosso Lar", aproveitará minha companhia. Passe bem, André!Último adeus à dedicada mãe de Lísias e me vi só, respirando o ar de outrostempos, a longos haustos.Não me demorei a examinar pormenores. Atravessei celeremente algumas ruas, acaminho de casa. O coração me batia descompassado, à medida que me aproximava dogrande portão de entrada. O vento, como outrora, sussurrava carícias no arvoredo dopequeno parque. Desabrochavam azáleas e rosas, saudando a luz primaveril. Em frente aopórtico, ostentava-se, garbosa, a palmeira que, com Zélia, eu havia plantado no primeiroaniversário de casamento.Ébrio de felicidade, avancei para o interior. Tudo, porém, denotava diferençasenormes. Onde estariam os velhos móveis de jacarandá? E o grande retrato onde, com a49Regressando à Casaesposa e os filhinhos, formávamos gracioso grupo? Alguma coisa me oprimiaansiosamente. Que teria acontecido? Comecei a cambalear de emoção. Dirigi-me à salade jantar, onde vi a filhinha mais nova, transformada em jovem casadoura. E, quase nomesmo instante, vi Zélia que saía do quarto, acompanhando um cavalheiro que mepareceu médico, à primeira vista.Gritei minha alegria com toda a força dos pulmões, mas as palavras pareciamreboar pela casa sem atingir os ouvidos dos circunstantes. Compreendi a situação e caleime,desapontado. Abracei-me à companheira, com o carinho da minha saudade imensa,mas Zélia parecia totalmente insensível ao meu gesto de amor. Muito atenta, perguntouao cavalheiro alguma coisa que não pude compreender de pronto. O interlocutor, baixandoa voz, respondeu, respeitoso:- Só amanhã poderei diagnosticar seguramente, porque a pneumonia se apresentamuito complicada, em virtude da hipertensão. Todo o cuidado é pouco, o Dr. Ernestoreclama absoluto repouso.Quem seria aquele Dr. Ernesto? Perdia-me num mar de indagações, quando ouviminha esposa suplicar, ansiosa:- Mas, doutor, salve-o, por caridade! Peço-lhe! Oh! não suportaria uma segundaviuvez.Zélia chorava e torcia as mãos, demonstrando imensa angústia.Um corisco não me fulminaria com tamanha violência. Outro homem se apossarado meu lar. A esposa me esquecera. A casa não mais me pertencia. Valia a pena de teresperado tanto para colher semelhantes desilusões? Corri ao meu quarto, verificando queoutro mobiliário existia na alcova espaçosa. No leito, estava um homem de idade madura,evidenciando melindroso estado de saúde. Ao lado dele, três figuras negras iam e vinham,mostrando- se interessadas em lhe agravar os padecimentos.De pronto, tive ímpetos de odiar o intruso com todas as forças, mas já não era euo mesmo homem de outros tempos. O Senhor me havia chamado aos ensinamentos doamor, da fraternidade e do perdão. Verifiquei que o doente estava cercado de entidadesinferiores, devotadas ao mal; entretanto, não consegui auxiliá-lo imediatamente.Assentei-me, decepcionado e acabrunhado, vendo Zélia entrar no aposento e delesair, várias vezes, acariciando o enfermo com a ternura que me coubera noutros tempos,e, depois de algumas horas de amarga observação e meditação, voltei, cambaleante, àsala de jantar, onde encontrei as filhas conversando. Sucediam-se as surpresas. A maisvelha casara-se e tinha ao colo o filhinho. E meu filho? Onde estaria ele?Zélia instruiu convenientemente uma velha enfermeira e veio palestrar, maiscalmamente, com as filhas.- Vim vê-los, mamãe - exclamou a primogênita -, não só para colher notícias doDr. Ernesto, como também porque, hoje, singulares saudades do papai me atormentam ocoração. Desde cedo, não sei por que penso tanto nele. É uma coisa que não sei bemdefinir...Não terminou. Lágrimas abundantes borbotavam-lhe dos olhos.Zélia, com imensa surpresa para mim, dirigiu-se à filha autoritariamente:- Ora essa! Era o que nos faltava!... Aflitíssima como estou, tolerar as suasperturbações. Que passadismo é esse, minha filha? Já proibi a vocês, terminantemente,qualquer alusão, nesta casa, a seu pai. Não sabe que isso desgosta o Ernesto? Já venditudo quanto nos recordava aqui o passado morto; modifiquei o aspecto das própriasparedes, e você não me pode ajudar nisso?A filha mais jovem interveio, acrescentando:- Desde que a pobre mana começou a se interessar pelo maldito Espiritismo, vivecom essas tolices na cachola. Onde já se viu tal disparate? Essa história dos mortosvoltarem é o cúmulo dos absurdos.A outra, embora continuasse chorando, falou com dificuldade:- Não estou traduzindo convicções religiosas. Então é crime sentir saudades depapai? Vocês também não amam, não têm sentimento? Se papai estivesse conosco, seuúnico filho varão não andaria, mamãe, a praticar por aí tantas loucuras.- Ora, ora - tornou Zélia, nervosa e enfadada -, cada qual tem a sorte que Deus lhedá. Não se esqueça de que André está morto. Não me venha com lamúrias e lágrimas pelopassado irremediável.Aproximei-me da filha chorosa e estanquei-lhe o pranto, murmurando palavras deencorajamento e consolação, que ela não registrou auditiva, mas subjetivamente, sob afeição de pensamentos confortadores.Afinal, via-me em face de singular conjuntura! Compreendia, agora, o motivo peloqual meus verdadeiros amigos haviam procrastinado, tanto, o meu retorno ao lar terreno.Angústias e decepções sucediam-se de tropel. Minha casa pareceu-me, então, umpatrimônio que os ladrões e os vermes haviam transformado. Nem haveres, nem títulos,nem afetos! Somente uma filha ali estava de sentinela ao meu velho e sincero amor.Nem os longos anos de sofrimento, nos primeiros dias de além-túmulo, mehaviam proporcionado lágrimas tão amargas.Chegou a noite e voltou o dia, encontrando-me na mesma situação deperplexidade, a ouvir conceitos e a surpreender atitudes que nunca poderia ter suspeitado.À tardinha, Clarêncio passou, oferecendo-me o cordial da sua palavra amiga ereta. Percebendo meu abatimento, disse, solícito:- Compreendo suas mágoas e rejubilo-me pela ótima oportunidade destetestemunho. Não tenho diretrizes novas. Qualquer conselho de minha parte, portanto, seriaintempestivo. Apenas, meu caro, não posso esquecer que aquela recomendação de Jesuspara que amemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, operasempre, quando seguida, verdadeiros milagres de felicidade e compreensão, em nossoscaminhos.Agradeci, sensibilizado, e pedi que me não desamparasse com o necessárioauxílio.Clarêncio sorriu e despediu-se.Então, em face da realidade, absolutamente só no testemunho, comecei aponderar o alcance da recomendação evangélica e refleti com mais serenidade. Afinal decontas, por que condenar o procedimento de Zélia? E se fosse eu o viúvo na Terra? Teria,acaso, suportado a prolongada solidão? Não teria recorrido a mil pretextos para justificarnovo consórcio? E o pobre enfermo? Como e por que odiá-lo? Não era também meu irmãona Casa de Nosso Pai? Não estaria o lar, talvez, em piores condições, se Zélia não lhehouvesse aceitado a aliança afetiva? Preciso era, pois, lutar contra o egoísmo feroz. Jesusconduzira-me a outras fontes. Não podia proceder como homem da Terra. Minha famílianão era, apenas, uma esposa e três filhos na Terra. Era, sim, constituída de centenas deenfermos nas Câmaras de Retificação e estendia-se, agora, à comunidade universal.Dominado de novos pensamentos, senti que a linfa do verdadeiro amor começava a brotardas feridas benéficas que a realidade me abrira no coração.