Capítulo 35: Encontro Singular

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  Guardavam-se petrechos da excursão e recolhiam-se animais de serviço, quando avoz de alguém se fez ouvir carinhosamente, a meu lado:- André! você aqui? Muito bem! Que agradável surpresa!...Voltei-me surpreendido e reconheci, no Samaritano que assim falava, o velhoSilveira, pessoa de meu conhecimento, a quem meu pai, como negociante inflexível,despojara, um dia, de todos os bens.Justo acanhamento dominou-me, então. Quis cumprimentá-lo, corresponder aogesto afetuoso, mas a lembrança do passado paralisava-me de súbito. Não podia fingirnaquele ambiente novo, onde a sinceridade transparecia de todos os semblantes. Foi opróprio Silveira que, compreendendo a situação, veio em meu socorro, acrescentando:- Francamente, ignorava que você tivesse deixado o corpo e estava longe depensar que o encontraria em "Nosso Lar".Identificando-lhe a amabilidade espontânea, abracei-o comovido, murmurandopalavras de reconhecimento.Quis ensaiar algumas explicações relativamente ao passado, mas não o consegui.No fundo, eu desejava pedir desculpas pelo procedimento de meu pai, levando-o aoextremo de uma falência desastrosa. Naquele instante, eu revia mentalmente o clichê dopretérito. A memória exibia, de novo, o quadro vivo. Parecia-me ouvir ainda a senhoraSilveira, quando foi a nossa casa, suplicante, esclarecer a situação. O marido estavaacamado, havia muito, agravando-se-lhes a penúria com a enfermidade de dois filhinhos.35Encontro SingularAs necessidades não eram reduzidas e os tratamentos exigiam soma considerável. Apobrezinha chorava, levando o lenço aos olhos. Pedia mora, implorava concessões justas.Humilhava-se, dirigindo olhares doridos à minha mãe, como a rogar entendimento esocorro no coração de outra mulher. Recordei que minha mãe intercedeu, atenciosa, epediu a meu pai esquecesse os documentos assinados, abstendo-se de qualquer açãojudicial. Meu genitor, porém, habituado a transações de vulto e favorecido pela sorte, nãopodia compreender a condição do retalhista. Manteve-se irredutível. Declarou quelamentava as ocorrências, que ajudaria o cliente e amigo, de outro modo, frisando, porém,que, no tocante aos débitos reconhecidos, não via outra alternativa que a de cumprirreligiosamente os dispositivos legais. Não podia, afirmava, quebrar as normas eprecedentes do seu estabelecimento comercial. As promissórias teriam efeito legal. Econsolava a esposa aflita, comentando a situação de outros clientes que, a seu ver, seencontravam em piores condições que o Silveira. Lembrei os olhares de simpatia queminha mãe lançou à desventurada postulante afogada em lágrimas. Meu pai guardaraprofunda indiferença a todas as súplicas e, quando a pobre mulher se despediu, repreendeuminha mãe austeramente, proibindo-lhe qualquer intromissão na esfera dos negócioscomerciais. A pobre família houve de arcar com a ruína financeira completa. Relembrava,perfeitamente, o instante em que o próprio piano da senhorita Silveira foi retirado daresidência para satisfazer às últimas exigências do credor implacável.Queria desculpar-me e todavia não encontrava frases justas, porque, na ocasião,também encorajara meu pai a consumar o iníquo atentado; considerava minha mãeexcessivamente sentimentalista e induzira-o a prosseguir na ação, até ao fim. Muitojovem ainda, a vaidade apossara-se de mim. Não queria saber se outros sofriam, nãoconseguia enxergar as necessidades alheias. Via, apenas, os direitos de minha casa, nadamais. E, nesse ponto, tinha sido inexorável. Inútil qualquer argumentação materna.Derrotados na luta, os Silveiras haviam procurado recanto humilde no Interior,amargando o desastre financeiro em extrema penúria. Nunca mais tivera noticias daquelafamília, que, certo, nos devia odiar.Essas reminiscências alinhavam-se-me no cérebro com a rapidez de segundos.Num momento, reconstituíra todo o passado de sombras.E enquanto mal dissimulava o desapontamento, o Silveira, sorrindo, chamava-me àrealidade:- Tem visitado o "velho"?Aquela pergunta, a evidenciar espontâneo carinho, aumentava o meu pejo.Esclareci que, apesar do imenso desejo, não conseguira ainda tal satisfação.Silveira identificou-me o constrangimento e apiedando-se, talvez, do meu estadoíntimo, procurou afastar-se.Abraçou-me cavalheirescamente e voltou ao trabalho ativo.Muito desconcertado, procurei Narcisa, ansioso de conselhos. Expus-lhe aocorrência, detalhando os sucessos terrenos.Ela ouviu-me com paciência e observou carinhosamente:- Não estranhe o fato. Vi-me, há tempos, nas mesmas condições. Já tive afelicidade de encontrar por aqui o maior número das pessoas que ofendi no mundo. Sei,hoje, que isso é uma bênção do Senhor, que nos renova a oportunidade de restabelecer asimpatia interrompida, recompondo os elos quebrados, da corrente espiritual.E, tornando-se mais categórica no ensinamento, perguntou:- Aproveitou, você, o belo ensejo?- Que quer dizer? - indaguei.- Desculpou-se com o Silveira? Olhe que é grande felicidade reconhecer ospróprios erros. Já que você pode examinar-se a si mesmo com bastante luz deentendimento, identificando-se como antigo ofensor, não perca a oportunidade de se fazeramigo. Vá, meu caro, e abrace-o de outra maneira. Aproveite o momento, porque oSilveira é ocupadíssimo e talvez não se ofereça tão cedo outra oportunidade.Notando-me a indecisão, Narcisa acrescentou:- Não tema insucessos. Toda vez que oferecemos raciocínio e sentimento ao bem,Jesus nos concede quanto se faça necessário ao êxito. Tome a iniciativa. Empreenderações dignas, quaisquer que sejam, representa honra legítima para a alma. Recorde oEvangelho e vá buscar o tesouro da reconciliação.Não mais vacilei. Corri ao encontro de Silveira e falei-lhe abertamente, rogandoperdoasse, a meu pai e a mim, as ofensas e os erros cometidos.- Você compreende acentuei -, nós estávamos cegos. Em tal estado, nadaconseguíamos vislumbrar, senão o interesse próprio. Quando o dinheiro se alia à vaidade,Silveira, dificilmente pode o homem afastar-se do mau caminho.Silveira, comovidíssimo, não me deixou terminar:- Ora, André, quem haverá isento de faltas? Acaso, poderia você acreditar que viviisento de erros? Além disso, seu pai foi meu verdadeiro instrutor. Devemos-lhe, meusfilhos e eu, abençoadas lições de esforço pessoal. Sem aquela atitude enérgica que nossubtraiu as possibilidades materiais, que seria de nós no tocante ao progresso do espírito?Renovamos, aqui, todos os velhos conceitos da vida humana. Nossos adversários não sãopropriamente inimigos e, sim, benfeitores. Não se entregue a lembranças tristes.Trabalhemos com o Senhor, reconhecendo o infinito da vida.E fixando, emocionado, os meus olhos úmidos, afagou-me paternalmente erematou:- Não perca tempo com isso. Breve, quero ter a satisfação de visitar seu pai, juntode você.Abracei-o, então, em silêncio, experimentando alegria nova em minh'alma.Pareceu-me que, num dos escaninhos escuros do coração, se me acendera divina luz parasempre.  

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