Capítulo 40: Quem Semeia Colherá

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  Eu não sabia explicar a grande atração pela visita ao departamento feminino dasCâmaras de Retificação. Falei a Narcisa, do meu desejo, prontificando-se ela a satisfazerme.- Quando o Pai nos convoca a determinado lugar - disse, bondosa, -, é que lá nosaguarda alguma tarefa. Cada situação, na vida, tem finalidade definida... Não deixe deobservar este princípio em suas visitas aparentemente casuais. Desde que nossospensamentos visem à prática do bem, não será difícil identificar as sugestões divinas.No mesmo dia, a enfermeira acompanhou-me, à procura de Nemésia, prestigiosacooperadora naquele setor de serviço.Não foi difícil encontrá-la.Filas de leitos muitos alvos e bem cuidados exibiam mulheres, que mais seassemelhavam a frangalhos humanos. Aqui e ali, gemidos lancinantes; acolá, angustiosasexclamações. Nemésia, que se caracterizava pela mesma generosidade de Narcisa, faloucom bondade:- O amigo deve estar agora habituado a estes cenários. No departamentomasculino a situação é quase a mesma.E, fazendo um gesto significativo à companheira, acentuou:- Narcisa, faça o obséquio de acompanhar nosso irmão e mostrar os serviços quejulgar convenientes ao aprendizado dele. Fiquem à vontade.Minha amiga e eu comentávamos a vaidade humana, sempre atida aos prazeresfísicos, enumerando observações e ensinamentos, quando atingimos o Pavilhão 7.40Quem Semeia ColheráLocalizavam-se ali algumas dezenas de mulheres, em leitos separados, um a um, aregular distância.Estudava eu a fisionomia das enfermas, quando fixei alguém que me despertoumais viva atenção. Quem seria aquela mulher amargurada, de aparência original? Velhiceque parecia prematura tipificava-lhe o semblante, em cujos lábios pairava um ricto, mistode ironia e resignação. Os olhos, embaciados e tristes, mostravam-se defeituosos.Memória inquieta, coração oprimido, em poucos instantes localizei-a no passado. Era Elisa.Aquela mesma Elisa que conhecera nos tempos de rapaz. Estava modificada pelosofrimento, mas não podia ter quaisquer dúvidas. Lembrei, perfeitamente, o dia em queela, humilde, penetrara em nossa casa levada por velha amiga de minha mãe, que aceitouas recomendações trazidas, admitindo-a para os serviços domésticos. A princípio, o ritmocomum, nada de extraordinário; depois, a intimidade excessiva, de quem abusa dafaculdade de mandar e da condição de servir alguém. Elisa pareceu-me bastante leviana e,quando a sós comigo, comentava sem escrúpulo certas aventuras da sua mocidade,agravando com isso a irreflexão de nossos pensamentos. Recordei o dia em que minhagenitora me chamou a conselhos justos. Aquela intimidade, dizia, não ficava bem. Erarazoável que dispensássemos à serva generosidade afetuosa, mas convinha pautar nossasrelações com sadio critério. Entretanto, estouvadamente, levara eu muito longe a nossacamaradagem. Sob enorme angústia moral, abandonou Elisa, mais tarde, a nossa casa,sem coragem de me lançar em rosto qualquer acusação. E o tempo passou, reduzindo ofato, em meu pensamento, a episódio fortuito da existência humana. No entanto, oepisódio, como alguma coisa da vida, estava também vivo. A minha frente tinha Elisa,agora, vencida e humilhada! Por onde vivera a mísera criatura, tão cedo atirada a dolorosocapítulo de sofrimentos? Donde vinha? Ah!... naquele caso, não me defrontava o Silveira,perto de quem pudera repartir o débito com meu pai. A dívida, agora, era inteiramenteminha. Cheguei a tremer, envergonhado da exumação daquelas reminiscências, mas, qualcriança ansiosa de perdão pelas faltas cometidas, dirigi-me a Narcisa, pedindo orientação.Eu mesmo me admirava da confiança que aquelas santas mulheres me inspiravam. Talveznunca tivesse coragem de pedir ao Ministro Clarêncio as elucidações que pedira à mãe deLísias e, possivelmente, outra seria minha conduta naquele instante, se tivesse Tobias ameu lado. Considerando que a mulher generosa e cristã é sempre mãe, voltei-me para aenfermeira, confiando mais que nunca. Narcisa, pelo olhar que me endereçou, parecia tudocompreender. Comecei a falar, contendo o pranto, mas, a certa altura da confissãopenosa, minha amiga obtemperou:- Não precisa continuar. Adivinho o epílogo da história. Não se entregue apensamentos destrutivos. Conheço o seu martírio moral, de experiência própria.Entretanto, se o Senhor permitiu que reencontrasse agora esta irmã, é que já o consideraem condições de resgatar a dívida.Vendo a minha indecisão, prosseguiu:- Não tema. Aproxime-se dela e reconforte-a. Todos nós, meu irmão, encontramosno caminho os frutos do bem ou do mal que semeamos. Esta afirmativa não é frasedoutrinária, é realidade universal. Tenho colhido muito proveito de situações iguais a esta.Bem-aventurados os devedores em condições de pagar.E, percebendo-me a resolução firme de empreender o necessário ajuste de contas,acentuou:- Vamos, mas não se dê a conhecer, por enquanto. Faça-o, depois de beneficiá-lacom êxito. Isso não será difícil, pelo fato de continuar ela em cegueira quase completa,temporariamente. Pelas forças que a envolvem, noto-lhe a triste característica das mãesfracassadas e das mulheres de ninguém.Aproximamo-nos. Tomei a iniciativa da palavra confortadora. Elisa identificou-se,dando o próprio nome e prestando, de boa- vontade, outras informações. Havia três mesesque fora recolhida às Câmaras de Retificação. Interessado em castigar a mim mesmo,diante de Narcisa, para que a lição me penetrasse n'alma com caracteres indeléveis,perguntei:- E sua história, Elisa? Deve ter sofrido muito...Sentindo a inflexão afetuosa da pergunta, sorriu, muito resignada, e desabafou:- Para que lembrar coisas tão tristes?- As experiências dolorosas ensinam sempre - objetei.A infeliz, que apresentava profunda modificação moral, meditou alguns momentos,como quem concatenava ideias, e falou:- Minha experiência foi a de todas as mulheres doidivanas que trocam o pãobendito do trabalho pelo fel venenoso da ilusão. Nos tempos da mocidade distante, comofilha de um lar paupérrimo, vali-me do emprego em casa de abastado comerciante, onde avida me impôs imensa transformação. Esse negociante tinha um filho, tão jovem quantoeu, e depois da intimidade estabelecida entre nós, quando toda a reação de minha parteseria inútil, esqueci criminosamente que Deus reserva o trabalho a todos os que amem avida sã, por mais faltosos que tenham sido, e entreguei- me a experiências dolorosas, quenão preciso comentar. Conheci, de perto, o prazer, o luxo, o conforto material e, emseguida, o horror de mim mesma, a sífilis, o hospital, o abandono de todos, as tremendasdesilusões que culminaram na cegueira e na morte do corpo. Errei, muito tempo, emterrível desespero, mas, um dia, tanto roguei o amparo da Virgem de Nazaré, quemensageiros do bem me recolheram por amor ao seu nome, trazendo-me a esta casa deabençoada consolação.Comovidíssimo até às lágrimas, perguntei:- E ele? Como se chama o homem que a fez tão infeliz?Ouvia-a, então, pronunciar meu nome e de meus pais.- E você o odeia? - indaguei, acabrunhado.Ela sorriu tristemente e respondeu:- No período do meu sofrimento anterior, amaldiçoava-lhe a lembrança, nutrindopor ele um ódio mortal; mas a irmã Nemésia modificou-me. Para odiá-lo, tenho de odiar amim mesma. No meu caso, a culpa deve ser repartida. Não devo, pois, recriminarninguém.Aquela humildade sensibilizou-me. Tomei-lhe a destra sobre a qual, sem que opudesse evitar, rolou uma lágrima de arrependimento e remorso.- Ouça, minha amiga - falei com emoção forte -, também eu me chamo André epreciso ajudá-la. Conte comigo, doravante.- E sua voz - disse Elisa, ingenuamente - parece a dele.- Pois bem - continuei, comovido -, até agora, não tenho propriamente uma famíliaem "Nosso Lar". Mas você será aqui minha irmã do coração. Conte com o meudevotamento de amigo.No semblante da sofredora, um grande sorriso parecia uma grande luz.- Como lhe sou grata! - disse ela enxugando as lágrimas - há quantos anosninguém me fala assim, nesse tom familiar, dando- me o consolo da amizade sincera!...Que Jesus o abençoe.Nesse instante, quando minhas lágrimas se fizeram mais abundantes, Narcisatomou-me as mãos, maternalmente, e repetiu:- Que Jesus o abençoe.  

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