Lendas Quileutes

433 29 6
                                    

[DAKOTA CONTTI]

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

[DAKOTA CONTTI]

Eu observava os fios negros e desordenados do cabelo de Seth oscilarem à medida que o vento envolvia nossos corpos. Ele mantinha sua cabeça sobre meu colo, com os olhos tranquilamente fechados. Seu peito subia e descia devagar e, enquanto meu melhor amigo pegava no sono passei os olhos por todo o terreno à minha frente.
Haviam muitas árvores ao redor, quase tornando o lugar um verdadeiro refúgio. As casas não ficavam tão perto umas das outras, no entanto, pude observar que Clearwater possuía três vizinhos - um deles nos fitava de sua janela, sem ao menos disfarçar, atrás da cortina transparente.
O chão abaixo de nós era, em sua grande maioria, constituído por terra e grama, sem indícios de asfalto para a passagem de veículos. A reserva quileute que havia pesquisado, era agora, real e mais pitoresca do que pudera um dia imaginar.
Parecia ser muito agradável viver por ali.
Seth se moveu um pouco abaixo de mim e dedilhei seu rosto, me esforçando para ser delicada. Sua pele era avermelhada e de um tom muito específico; herança genética de sua tribo. Seu rosto era livre de qualquer indício de pelos, comprovando o mito de que índios não possuíam barba.
Acabei me perdendo em seus traços, passando o dedo levemente por seu nariz, descendo para a boca e voltando para as bochechas rosadas. Ele abriu um sorriso fraco e me afastei imediatamente; envergonhada.
Estávamos sentados no balanço de madeira da varanda, entretidos com o barulho dos galhos de árvores sendo arrastados de um lado para o outro mediante à ventania. A ponta de meus pés tocavam o chão de cerne e, volta e meia, eu me impulsionava para frente e para trás, numa tentativa de ninar o menino deitado sobre minhas pernas nuas.
Este pareceu despertar de sua soneca de vinte minutos, se levantando num salto.
"Está com fome?" Seth perguntou em meio a um bocejo, tentando de maneira falha manter o equilíbrio após se erguer num rompante.
Neguei com a cabeça, sem deixar de encarar o corpo estirado à minha frente.
Me perguntei o porquê de não tê-lo notado desde o início de toda a saga de nossa amizade conturbada. Seth fazia jus à fama que tinha na escola. Não apenas por ser um dos caras mais lindos do terceiro ano - com músculos que pareciam ter sido esculpidos por artistas da Grécia Antiga -, mas por ser extremamente gentil, cavalheiro e companheiro. Seth exalava pureza em sua voz, seus atos e pensamentos. Ele, de fato, era o famigerado garoto dos sonhos de qualquer garotinha apaixonada. Eu não fazia parte desse grupinho, provavelmente, fora um dos motivos para eu rejeitá-lo.
"Você mal tocou na sua comida no almoço." Ele reclamou se sentando ao meu lado. Seu olhar foi de encontro ao meu por breves segundos, até eu dar atenção aos meus pés descalços.
"Estou sem fome." Sussurrei balançando a perna num movimento sincronizado.
"Qual é a sua comida preferida? Se eu cozinhar para você, talvez se anime!" Ele exclamou com os olhos cheios de entusiamo.
"Gnocchi" Respondi sem interesse.
Seth pareceu balançar a cabeça, como quem tenta compreender o que está acontecendo, pousou às mãos na cintura e ordenou:
"Tem como falar em inglês, por favor?"
"Nhoque, Seth." Eu respondi rindo. "Nhoque é minha comida preferida."
"Hm." Ele murmurou pensativo, passando pela porta de entrada logo em seguida.
Observei o lugar vazio, antes preenchido pelo corpo robusto de Seth ser tomado por pequenos redemoinhos de vento - os quais arrastavam folhas secas até meu rosto. Fechei meus olhos de imediato, impedindo que algo entrasse neles. Assim que os abri novamente, me deparei com a imagem de uma pessoa no quintal.
Era um homem esbelto com um olhar profundo e agressivo. Seus pés descalços tocavam a grama, quase fixando raízes no chão. Suas mãos eram mantidas em punhos fechados, sendo possível ouvir o estalar de suas falanges. E seu rosto assumia um semblante medonho, sombrio e intrínseco, levando qualquer um a mergulhar em sua escuridão miserável.
Me levantei, calculando meus passos, sem tirar meus olhos do intruso. Este puxou todo ar que podia para seus pulmões, para então dizer:
"Quem é você?" Sua voz entoou num timbre agudo e senti meu corpo estremecer por inteiro.
O dia havia sido cansativo e estressante o suficiente para eu perder toda a minha confiança. Meses atrás um homem como aquele não me intimidaria nenhum pouco. No entanto, com o decorrer dos fatos que aconteciam constantemente em minha vida, qualquer mosca pequenina seria capaz de me assustar.
Não respondi à pergunta.
O homem pareceu se irritar um pouco com meu comportamento, enquanto levava as mãos aos bolsos da bermuda jeans e bufava alto.
A porta de madeira arranhou atrás de mim, revelando meu melhor amigo. Ele manteve uma sobrancelha arqueada por breves segundos, sustentando o olhar intimidador do intruso, como se ambos dissessem algo sem ao menos proferirem uma palavra sequer. Aquele tipo conexão fora a coisa mais intensa que havia presenciado em muitos anos.
"Sam, esta é Dakota." Seth disse, agora, descontraído, pousando sua mão sobre minha cintura.
O homem à minha frente, imediatamente mudou seu semblante sério, deixando-se revelar um sorriso alegre nos lábios grossos. Sam se aproximou de mim a passos largos e desengonçados, estendendo sua mão amigavelmente.
Olhei, novamente para Seth - totalmente confusa. Este me encorajou com um leve empurrãozinho, fazendo-me dar um passo à frente.
Apertei a mão de Sam, sentindo cada calo de sua pele áspera. O homem sacudiu meu braço de maneira divertida e, acabei por fim, soltando uma gargalhada.
"É um prazer, finalmente, conhecê-la, Dakota." Ele admitiu risonho ao me soltar.
Então, logo elevou seu olhar a Seth mais uma vez. Eles precisavam conversar a sós. Não precisei ler a mente daquele homem para entender que não era bem-vinda na discussão.
"Hm. Preciso ir ao banheiro. Como faço para chegar até lá?" Perguntei, numa tentativa de não atrapalhar os dois e fugir daquele clima tenso.
"Suba as escadas. É a única porta de frente para os degraus." Seth respondeu, enquanto abria a porta para mim.
Passei por baixo de seu braço, soltando uma risada baixa e segui meu caminho até a escada pintada com verniz e tinta preta - uma combinação um tanto peculiar. Segurei no corrimão por um momento, vendo como meu amigo olhava para mim mantendo o sorriso amável de sempre.
Apesar de não conseguir ler a mente de Seth por completo - por algum motivo o qual eu escolhera não saber ainda - era possível perceber que grande parte de seus pensamentos eram voltados para a minha imagem. Ele, de alguma forma, pensava em mim o tempo todo. Não era algo grotesco ou bizarro. Eram coisas muito particulares, as quais ele mesmo não tinha noção que eu sabia.
Quando Seth me via pela primeira vez durante o dia, seu pensamento era voltado à minha auto-análise. Era como se sua mente o forçasse a ter total certeza de que eu estava bem e ele se lançava numa busca por alguma anormalidade no meu humor e, principalmente, fisicamente. Motivo pelo qual ele gastava quase cinco minutos me observando calado, subindo e descendo seu olhar repetidas vezes, enquanto eu tagarelava sobre um assunto aleatório.
Ao me ver em outras ocasiões, como por exemplo, no almoço, Seth parecia muito determinado em prestar atenção em cada coisa que eu dizia. Ele sustentava sua cabeça com o punho e o cotovelo sobre a mesa, completamente atento - a mesma cena todas as vezes. Nessas horas ele só tirava seu foco de mim, para pensar em como eu parecia como um anjo. O que, de certa forma, era engraçado e um pouco intrigante.
Ele estava apaixonado por mim. E aquele sentimento denotava-se como o mais puro; sem cobranças e sem querer algo em troca, o que me levava a acreditar que Seth me via realmente como sua melhor amiga ou até mesmo uma irmã, a qual ele não sentia atração física, porém psíquica e sentimental. Era um elo, uma ligação forte que só ele possuía. Ligação esta que eu não tinha acesso em sua mente.
Ao passar pela porta do pequeno banheiro e, então, trancá-la, encarei a imagem refletida no espelho grudado à parede. Eu mantinha um olhar distante e rosto apático, envolvido por resquícios de sangue que insistiram em se fixar sobre minha pele. Abri a torneira de forma imediata, tentando a todo custo arrancar toda a prova da tragédia matutina de minhas bochechas. Assim que terminei, puxei a toalha de rosto, antes fixada em um toalheiro e o enterrei ali, deixando minha vontade de gritar até perder a voz se esvair lenta e calmamente.
Lembrei de Josie jogada na poça de seu próprio sangue naquele instante e, um turbilhão de sensações e emoções me cercou como se eu fosse um animal prestes a ser enjaulado. Minha garganta imediatamente secou, quando me dei conta de que a culpa era minha e eu não havia feito nada para me redimir ainda.
"Dakota, está tudo bem aí?"
Fazia pouco menos de dez minutos que eu estava trancada naquele banheiro sem encontrar uma solução cabível para resolver meu atual problema. E, Seth já estava estirado do outro lado da porta, sem me deixar tem o mínimo de privacidade possível. Aquilo, sem sombra de dúvidas, me tirou do sério.
Posicionei a toalha turquesa novamente no toalheiro, próximo ao espelho oval, e caminhei três passos até a maçaneta da porta. Assim que a abri, dei de cara com um garoto de quase dois metros de altura com a mão direita em punho, prestes a socar o material. Ele abriu um sorriso sem graça, levando os braços para trás de seu corpo mostrando cavalheirismo ao ceder espaço para que eu pudesse passar.
O encarei irritada por um momento, vendo o semblante de Seth se tornar confuso. Suas sobrancelhas se juntaram e a testa ficou enrugada. Seus olhos me observavam sem ao menos piscar, a medida que ele tentava entender o que havia feito de errado para eu estar com a expressão tão brava.
"Seth você não me deixa respirar, já pensou nisso? Esse é o motivo." Falei, dispensando qualquer tipo de joguinho. Eu não tinha paciência para esperá-lo descobrir, vendo que ele não estava nem perto da resposta.
"O quê?" Ele balançou a cabeça, na tentativa de organizar informações, pousando uma mão sobre a testa. Então gritou: "Pare de ler meus pensamentos!"
Bufei batendo os pés e corri até a escada, segurando firme no corrimão.
"Você nunca chegaria a uma conclusão correta." Reclamei em meio aos degraus. "Apenas dei uma ajudinha."
"Me sinto violado quando lê meus pensamentos." Ele admitiu logo atrás de mim.
Cheguei ao final da escadaria e me virei para encarar meu amigo, que tocava os pés lentamente no último degrau coberto por carpete escarlate. O vi se sentar, pousando o rosto sobre a palma da mão, mantendo uma de suas expressões debochadas. Cruzei os braços sobre o peito, demonstrando minha indignação, para então dizer:
"Você quer mesmo reclamar sobre privacidade?" 
Seth pareceu entender o que eu queria pontuar e logo salientou:
"Isso é diferente."
"Diferente como?" Soltei uma risada irônica, ainda com meus braços cruzados. "Eu entendo que se preocupa comigo e, até tento compreender o porquê de sempre estar tão alerta e devoto. Só que parece que tudo isso é algo que vai além de um simples sentimento humano."
"Porque não é um sentimento humano, Dakota." Ele disse ríspido.
"Sim, você é como eu. Mas isso é o que você diz, Seth."
"O que está insinuando?" Ele arqueou uma sobrancelha.
"Você se importa demais."
Seth fez um gesto com a cabeça em total confusão. E, me perguntei aonde eu queria chegar.
Era fato que o momento de tensão me fizera dizer coisas que apenas meu subconsciente tinha acesso. Eu mesma não imaginava ter este tipo de desconfiança quanto a Seth. Achar que ele poderia trabalhar para os agentes de Western Inc. fora a teoria da conspiração mais sem nexo que minha mente pudera criar, mas fazia sentido se tratada com coerência e mais atenção.
"Eu não quero invadir seu espaço. É só que...É complicado. É mais forte que eu ter certeza de que está segura."
"Por que acredita que sou uma menininha que não sabe se defender sozinha?"
"Não!" Ele disse exasperado; quase num grito. "Só acho que devo ceder ajuda, quando precisar dela, claro."
"É por isso que apareceu magicamente na porta da minha casa meia hora depois deu ter matado uma pessoa?"
Eu já não pensava nas minhas palavras e muito menos no efeito delas - mesmo deixando que Seth juntasse o quebra-cabeça e concluísse sozinho a acusação. O descontentamento com tudo o que acontera naquela manhã era tanto, que eu estava buscando meios de extravasar minha raiva. Infelizmente, meu amigo era a única pessoa disponível no momento para eu destilar meu veneno.
"Eu sabia que algo estava acontecendo. Eu senti." Ele respondeu baixinho, sem tirar sua atenção da janela. Seth parecia tomar uma decisão, enquanto apreciava o quintal de seu terreno.
Revirei os olhos, batendo os pés sobre o assoalho, num batuque contínuo e irritante.
"Então me explique o que é esse "sentimento mágico", porque vou começar a acreditar que isso tudo não passa de uma obsessão idiota." Gesticulei meus braços para cima, deixando bem claro que estava de saco cheio de todo aquele mistério.
"Obsessão?" Seth repetiu a palavra em meio a sua revolta interna.
Ele se manteve em silêncio por alguns instantes e, não li sua mente no intuito de obter informações sobre o que pensava. De fato, meu comportamento era errado e invasivo, e eu não queria ser hipócrita. Se eu pedia para Seth mais espaço, deveria, também, deixar que ele tivesse seu momento a sós.
Logo em seguida, o vi se levantar tomado pela adrenalina que percorria todo seu corpo. Meu amigo bufou alto, fechando os olhos. Balançou a cabeça devagar, fitando o assoalho por breves segundos e então, passou sua mão por meu braço, agarrando meu pulso ao me arrastar porta à fora.
Meus pés descalços se apressavam para acompanhar os passos largos e impacientes de Clearwater, os quais seguiam até uma trilha de terra, envolta por diversas árvores e arbustos, os quais impediam uma visão precisa do céu acizentado. O ambiente era úmido e policromático, com plantas de diversas cores e tamanhos espalhadas pela leiva esverdeada e vivaz.
Olhei para o caminho atrás de nós - o qual se fazia cada vez mais distante da casa de madeira -, enquanto era puxada por Seth para dentro de uma floresta e, de repente minha mente me levou para todos os possíveis erros daquela situação. Algo dentro de mim - possivelmente minha intuição - me alertou de forma imediata e me desvencilhei da mão do garoto à minha frente.
Seth, logo parou de andar, dando meia volta para me observar melhor.
"O que está fazendo?" Perguntei, tentando não demonstrar medo. Apesar de confiar em Seth, eu tinha um histórico muito grande de pessoas que haviam me decepcionado. Com ele, não iria ser diferente, até que se provasse o contrário; eu não podia arriscar.
"Preciso te mostrar uma coisa." Ele continuou a caminhar, esperando que eu o seguisse.
Não dei um passo sequer.
Notando a quietude atrás de si, Seth parou de vez. Apenas o assobio de pássaros sobre nossas cabeças foi capaz de preencher o silêncio que se fez presente, enquanto meu amigo se mantinha de costas para mim. Ele pareceu respirar fundo, deixando seu corpo relaxar a medida que expelia todo o ar de seus pulmões.
"Dakota..." Clearwater se virou e pude ver os fios de seus cabelos dançarem junto ao vento que nos rodeava, sentindo a brisa fria passar por mim.
A distância entre nós era de dois metros, mais ou menos e, minha mente começou a calcular minuciosamente os possíveis locais de fuga para as possíveis situações de risco que estariam prestes a acontecer. Vê-lo tão inseguro e nervoso me deixava insegura e nervosa, como se nossas reações fossem capaz de se fundir tornando-se uma só.
Ele, então, continuou a dizer:
"...Eu sou um indígena e, bom, isso você já sabe." Ele deu uma risada; os lábios trêmulos acusando sua hesitação. "Na minha tribo existem lendas que são de certa forma, efetivas. Uma delas parte da premissa de que nossos ancestrais foram transformados por um ser mitológico, conhecido como 'O transformador' na sua língua. Os primeiros nativos se tornaram lobos e, das seis sociedades tribais que existiam na época, uma delas era usada para o divertimento desse ser humano mitológico e outras para sua proteção. Mas, então, nossos antepassados começaram a se transformar à medida que os frios ameaçavam destruir nossas famílias e, cada vez mais nativos tornaram-se lobos, sendo capazes de assegurar que os Quileutes vivessem em paz." Seth deu uma pausa, buscando ar. Ele parecia estar lutando contra sua ansiedade ou algo interno que o impedia de dizer tudo o que queria de uma vez só.
Meus olhos mal piscavam à medida que ele falava. O anseio pelo desconhecido parecia ter feito meu medo se esvair por completo e, o que me mantinha ali - vidrada no garoto à minha frente - era a vontade de saber o que Seth Clearwater escondia todo esse tempo.
"Eu não queria envolver você...Não significa que eu não queira que conheça a minha história, a minha família e meus amigos da tribo. Muito menos que não confio em você. Longe disso." Ele balançou lentamente a cabeça fitando o chão. "Significa que tenho medo do que virá depois. Eu só preciso que entenda, Dakota." Seth disse dando um passo à frente e me afastei no mesmo instante. "Não precisa ter medo de mim. Eu não vou te machucar, eu prometo." Ele se aproximou novamente, estendendo uma mão para mim.
Pensei duas vezes antes de tocá-la. No entanto, acabei cedendo e deixei minha mão tatear a pele tórrida de meu amigo. Seth, então, fincou seu olhar no meu em silêncio e, aos poucos, pude sentir sua calmaria transitar por todas as artérias e veias de meu corpo, como se aquilo realmente fosse possível de acontecer. Ele sorriu por breves segundos me fazendo ignorar o fato deu estar nervosa nos minutos anteriores e, por fim, sussurrou:
"O motivo da minha temperatura corporal estar em constantes quarenta e cinco graus é simples e eu acabei de explicar."
Fitei nossas mãos entrelaçadas por instantes intermináveis, enquanto pensava naquela frase, buscando todas as pontas soltas e informações do que ele havia dito sobre a lenda de sua tribo. Então, como uma enchente que te toma sem aviso prévio, eu me deixei ser engolida por um turbilhão de conclusões e esclarecimentos, sentindo, de repente, meu estômago doer, como se tivesse levado um soco violento. Logo em seguida - ainda entorpecida e sem reação - me distanciei pousando as mãos na boca.
"Não é possível." Declarei com a voz abafada. "Não. Isso não é possível, Seth." Andei de um lado para o outro com a mão na testa, procurando naquele chão de terra algo que me fizesse ficar melhor ou um pouco menos descontrolada. Uma borboleta ou formiguinha, tanto faz. Eu só precisava me prender em algo belo e simples da fauna ou flora para esquecer o horror que estava se tornando a minha vida. "Você é um lobo?" Eu gritei espantando os pássaros antes repousados sob os galhos das árvores acima de nós.
"Sim." Ele respondeu risonho.
"Por que você está rindo, seu idiota?" O empurrei para trás, sentindo meu punho doer com o impacto. Olhei para minhas mãos por alguns instantes, depois encarei Seth com raiva: "Você tem adamantium nos ossos igual ao Wolverine? Mas que droga!"
Clearwater gargalhou alto, levando a cabeça para trás. Ele parecia estar se divertindo com toda aquela cena, o que estava me deixando furiosa.
Cruzei os braços, esperando o garoto se recompor. Ele, então, me fitou com seriedade. Passou as mãos pelos cabelos desgrenhados e pigarreou, buscando por sua voz encorpada.
"Enfim, eu sou um transformador. Um lobisomem. Um lobo. Um garoto. E minha função é proteger a minha tribo e, meu imprinting." Ele declarou imitando um super-herói e revirei os olhos com a brincadeira de mal gosto. Seth, de fato, estava lidando com tudo aquilo da maneira mais tranquila possível - e eu desconfiaria se fosse o contrário.
"Imprinting?" Perguntei confusa, me esforçando para não sair do assunto.
Eu precisava compreender melhor. Ele era como eu e, agora, eu já não me sentia tão sozinha quanto antes. O sentimento de representatividade era real. Eu possuía um melhor amigo que também lutava para se incluir em uma sociedade que não condizia com a realidade em que vivia cotidianamente. Aquilo era incrível em tantos aspectos.
De fato, eu não sabia ao certo minha real impressão daquele momento, mas o frio na barriga e a insatisfação por não obter todas as respostas de todas as minhas indagações instantaneamente, demonstravam que eu estava animada com a ideia de Seth ser um lobisomem.
"Sim. Imprinting. É mais conhecido como um comportamento que o animal adquire no início da vida, onde se sente completa e irreversivelmente apegado à primeira coisa que o cerca, geralmente a mãe." Ele disse sorridente, como se aquilo fosse o óbvio. "Na nossa tribo o imprinting também existe para nós lobos, mas de uma forma um pouco diferente e peculiar."
"Seth...Eu não enten-"
"Vou explicar melhor depois, tudo bem?" Ele passou um braço sobre meu ombro, me puxando para um aperto de urso, impedindo que eu terminasse minha frase e, também, minha respiração. "Agora que já soltei a bomba, posso te mostrar o meu truque?"
"Você vai se transformar em lobo aqui?" Perguntei encarando os cipós que nos cercavam, fechando o caminho que levava até a casa de Seth. Estávamos longe o suficiente para eu considerar aquilo perigoso e negligente. Se algo acontecesse, eu poderia matar Seth em segundos. "E se você me morder ou tentar arrancar a minha perna?"
"As coisas não funcionam desse jeito, Dakota. Eu ainda sou racional na minha forma animal, desde que não me tire do sério." Ele depositou um beijo no topo de minha cabeça e se infiltrou entre as árvores rapidamente, proferindo um 'Já volto.'
Ouvi o barulho de algo sendo estilhaçado e esperei impassível pelo o que viria posteriormente. Por trás de arbustos medianos e galhos secos, um lobo enorme e robusto se fez presente. Suas patas de grandes dimensões tocavam a leiva com brutalidade, enquanto se aproximavam de mim. Lembrei de imediato do que Seth havia dito. Ele ainda estava ali dentro. Ainda era o Seth que eu conhecia, apenas em sua forma animal.
Ao chegar mais perto de meu rosto, o lobo de pelugem arenosa encostou o longo focinho em minha bochecha por poucos instantes. Então, se afastou fazendo uma careta, deixando-se revelar a longa fileira de dentes afiados como adagas. Um rosnado alto saiu de sua boca e tapei os ouvidos assustada com o barulho que rompia pela floresta como um trovão.
O topo da cabeça do animal - também conhecido como Seth - começou a roçar meu braço e me permiti passar minha mão por entre seus pelos lisos. Ele deixou escapar um grunhido baixo, para, por fim, se afastar, tão rápido que meus olhos mal puderam captar sua ausência.
"O que achou?" Ele perguntou enquanto saia do meio de seu pequeno refúgio, puxando sua bermuda para cima. Sendo tão ágil e ligeiro quanto quando partiu.
"Você precisa me explicar qual é a sensação. Sério. Por que demorou tanto para me contar? Seth, esse dom é a coisa mais legal que vi em toda minha vida. E já tive contato com todo tipo de poder que possa imaginar! Você é um lobisomem, caralho!" Falei sem fôlego em meio à euforia que me rondava. Eu estava tão extasiada que poderia passar o dia todo aprendendo sobre os Quileutes.
"Pensei que sua reação seria outra. Na verdade, todo esse cenário aqui, não passava pela minha cabeça quando pensava em contar isso pra você." Ele admitiu. "Mas você é a Dakota. É imprevisível e difícil de decifrar." Seth pareceu se perder em seus próprios pensamentos por uma fração de segundo, enquanto passava uma mecha de meu cabelo para trás de minha orelha. Logo em seguida, seu semblante se transformou em um sorriso radiante e feliz, quando disse: "Tirei um peso enorme das costas agora. Você tem noção de como estou me sentindo leve por ser quem sou de verdade perto de você?"
Assenti timidamente com a confissão, sentindo minhas bochechas corarem.
"Não, você não tem, porque está séria demais pro meu gosto." Seth disse passando seus braços por minha cintura, pousando meu corpo de ponta cabeça sobre seu ombro direito - como se carregasse uma caixa vazia.
"Seth, seu idiota" Eu gritei junto de uma risada atrapalhada. "Me coloca no chão." Ordenei sentindo todo meu sangue correr para minha testa num rompante.
"Estranho. Escuto algo, mas não sei de onde esse barulho vem." Ele falou me ignorando por completo. Seus pés começaram a caminhar pelas folhas secas, e senti meu corpo oscilar, deixando meus braços serem levados de um lado para o outro à medida em que sentia vontade de vomitar.
"Me solta ou eu vomito em você!" Ameacei decidida, no entanto, sem força alguma para sair daquela situação humilhante.
"Parece um zumbido de uma mosca chata." Seth continuou com sua brincadeira, enquanto eu podia avistar sua casa de cabeça para baixo, cada vez mais próxima de minha visão limitada.
Assim que nos aproximamos da varanda, Clearwater me pousou no chão e senti o peso de meus cabelos, quando estes caíram sobre meus ombros. Analisei os fios embolados por resquícios de sangue e senti um nó na boca do estômago.
"Preciso de um banho. Agora." Reclamei ao subir até a varanda. Passei pela porta de entrada bruscamente - sem tocar na maçaneta para abri-la - sentindo que a qualquer momento colocaria para fora tudo o que havia dentro de meu estômago.
"Vou pegar alguma roupa para você vestir." Seth salientou ao me ver correndo pelos degraus de sua escada.
Ao chegar no banheiro, a primeira coisa que avistei foi a privada. Me agachei diante do objeto, levantando sua tampa, deixando-me expelir todo conteúdo gástrico do meu corpo e, só parei quando senti que não havia mais nada para ser colocado para fora. Passei o dorso da mão sobre a boca e me escorei na parede, repousando minha cabeça no azulejo gélido.
"Me perdoa. Me perdoa. Me perdoa." A imagem de Seth se fez presente sobre meus olhos me impedindo de enxergar a fresta de luz que vinha da pequenina janela à minha frente. Seu braço com músculos redondos e íntegros, fixou-se sobre meu corpo abatido. E só assim, pude perceber o quanto eu precisava de uma soneca de um dia inteiro, sem interrupções.
"Qualquer hora você quebra um de meus ossos." Brinquei, assim que fiquei de pé, contra a minha vontade.
"Não tenho muita noção da minha força. Eu sei que posso te machucar, sem perceber, mas me esforço pra que isso não aconteça." A voz de meu amigo parecia uma súplica e revirei os olhos me irritando com todo aquele cuidado sem necessidade.
"Foi ironia. Apesar de ser verdade, mas foi ironia." Me desprendi dos braços firmes dele - os quais lutaram para me soltar -, caminhando lentamente até o chuveiro.
Antes de abaixar meu short e tirar toda aquela roupa que estava grudada em meu corpo como um carma, desde o ocorrido naquela manhã, parei no meio do caminho para afrontar o garoto escorado na pia do banheiro, sem intenção de se retirar dali.
"Você não tem mais o que fazer, não?" Perguntei com os braços cruzados; arqueando uma sobrancelha automaticamente.
"Desculpa, às vezes, eu me esqueço. Privacidade. Certo. Foi mal." Ele riu jogando as mãos para o alto. "A roupa está aqui." Seth disse apontando para uma das estantes com uma pilha de roupas, de frente para a pequena banheira de acrílico.
Assenti risonha, esperando que meu intruso fosse embora. Mas ele, de certa forma, parecia incomodado em ir.
"Seth!" Reclamei impaciente, sentindo meu corpo pedir por aquela ducha de água.
"Você vai ficar bem? Vou estar lá embaixo vendo televisão." Ele deu meio passo para frente, mantendo as mãos nos bolsos da bermuda.
"Sim." Afirmei gesticulando para que ele fosse embora.
"Assim...Você tem certeza?"
Revirei os olhos, batendo os pés contra o chão demonstrando claramente minha raiva. Pousei minhas mãos pequeninas sobre o peito nu de meu amigo e o empurrei levemente para trás.
"É só um banho. Você vai sobreviver sem mim." Entrei em sua brincadeira, a medida que me esforçava para fazer com que seus pés destravassem do assoalho.
"Qualquer coisa, você grita. Ou pode chamar baixo também, minha audição é boa." Ele disse dando mais meio passo para trás.
"Seth, eu vou te empurrar à força!" Reclamei ríspida e indignada por não estar progredindo. Era óbvio que ele era mais forte que eu, por que diabos eu ainda estava tentando empurra-lo?
"Que força?" Ele gargalhou debochado e vi seus olhos se fecharem, dando mais charme ao rosto jovial. E no mesmo instante, o empurrei para fora do banheiro com minha telecinese, travando a porta. Do outro lado, o ouvi tentar girar a maçaneta, sem sucesso.
"Isso não é justo!" Ele socou a madeira sem muito esforço, ainda sendo possível ouvir sua risada.
De alguma maneira algo me dizia que as coisas iriam mudar. Ter ciência sobre a magnitude que era o dom de Seth implicava em  circunstâncias, as quais eu não conseguia entender naquela hora. Naquela hora o meu sentimento era de pertencimento e gratidão por não estar só. Naquela hora eu tinha certeza de que possuía a pessoa certa em quem confiar. Naquela hora eu me sentia abraçada por poder ser a Dakota, 056. Naquela hora eu não sabia que minha pior decisão fora ter feito Seth Clearwater revelar que era um lobisomem.

Imprinting Onde histórias criam vida. Descubra agora