Capítulo I

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Lentamente, começo a lembrar-me da minha vida anterior. Não eram propriamente memórias, mas sim sensações. Culpa, tristeza, dor. Não sabia porquê, mas era tudo o que conseguia sentir. Eram tudo aquilo em que eu conseguia pensar.

A minha irmã era a única pessoa de quem me lembrava claramente. Todos os outros eram pequenos borrões em memórias desfocadas, das quais só conseguia retirar emoções. No entanto, tudo aquilo que eu me conseguia lembrar pareciam ser lembranças más, tristes. Seria a minha vida composta por apenas isso?

Não sabia o que fazer. Nem sabia porquê que continuava ali, a ser inundada de memórias melancólicas.

Depois do meu acidente, a escola fez-me um memorial, mas ninguém pareceu muito interessado. O meu funeral foi uns dias mais tarde. Decidi aparecer, apesar de não querer. Houve algo que me puxou para lá. Nem notei quando apareci em frente à Willow, a minha irmã de 12 anos, que parecia inconsolável, sentada nas desconfortáveis cadeiras da igreja. Via-se que tinha estado a chorar. Ela era tudo para mim, e agora não podia fazer nada para a ajudar.

Queria abraçá-la, dizer-lhe que tudo ia ficar bem, mas não tinha como. Estiquei o braço e toquei ao de leve com as pontas dos meus dedos na bochecha dela. Para meu espanto, funcionou. Uma descarga de energia saiu do meu corpo e passou para o dela com aquele toque, permitindo-a sentir os meus dedos.

- Sou eu, Will. - murmuro, mesmo sabendo que ela não vai ouvir. Apesar da descrença nos seus olhos, vi que ela sabia. Sabia que era eu. Eu, a irmã que a consolou quando o nosso pai morreu, mas também que festejou com ela quando ela tinha boas notas. A irmã que a levava a comer um gelado todas as terças-feiras depois das aulas só porque sim, e que a ajudava nos trabalhos de matemática mesmo não percebendo nada de equações, mas que brigava com ela quando a minha camisola favorita ficava estragada depois de ela a usar. Ela sabia que eu estava ali.

***

Depois da cerimónia ter sido dada por terminada e as pessoas começarem a sair da igreja, em pequenos montes, reparei num brilho no meio da multidão. Não era um brilho normal, como o de uma lâmpada; ao invés, acarretava algo de sobrenatural. Ao olhar melhor, vejo que era o rapaz que tinha visto no dia em que morri. A sua luz despertava-me curiosidade, mas, para além disso, atraía-me para ele de uma maneira inexplicável. Porque estaria ele ali? Nunca o conhecera em vida, mas, no entanto, ali estava ele, a infiltrar-se no meu funeral. Quem era ele, e o que era aquele brilho que emanava dele?

Ele parecia particularmente perturbado. Olhava de um lado para o outro, como que se procurasse alguém. Quando olhou para onde eu estava, fez uma coisa inesperada: olhou-me nos olhos, como se me visse. Mas... ninguém me via, certo?

Confusa, despeguei o nosso olhar e observei a minha mãe e irmã. Perguntava-me como se estariam a sentir, apesar de saber por antemão que uma situação como esta não é fácil. Agora seriam apenas elas lá em casa: dois quartos vazios, dois espaços à mesa por preencher. Questionei-me se a minha mãe ia demorar tanto tempo para acertar com as porções da comida como quando o meu pai morreu.

A Willow parecia estar prestes a desfazer-se em lágrimas de novo. Éramos bastante próximas, e, com a morte do nosso pai a apenas um ano de distância, sabia que iria ser ainda mais difícil de superar. A minha mãe andava com a cabeça mais erguida que o habitual e as mãos juntas em frente da barriga, fazendo com que parecesse que ela estava a rezar constantemente. Talvez estivesse.

A minha atenção foi desviada para o rapaz de novo. Ele estava a ir-se embora. Depois de um olhar rápido para a minha família e uma promessa sussurrada de que voltaria rapidamente, decido segui-lo até casa. Continuava sem ter a certeza se ele me conseguia ver ou não, por isso, manti uma certa distância, com medo. No entanto, não conseguia não deixar de querer chegar-me mais perto. Era aquela energia, aquela luz... estava a fazer-me algo. Como se fosse um íman.

A caminhada não foi longa: dois quilómetros, no máximo. Ao dobrar as esquinas, reparei que o rapaz me ia lançando olhares de esguelha. A caminhada, feita num percurso bastante acidentado, com descidas e subidas a pique, não me custou nada, mas, quando ele finalmente chegou ao apartamento onde vivia, a sua respiração entrecortada era visível no ar frio da noite.

Ao olhar uma segunda vez para o edifício, noto que o lugar me é familiar. Com um sorriso, lembro-me que costumava passar por ele todos os dias quando ia a pé para a escola. Percebo também que o prédio ficava a menos de um quarteirão da igreja, pelo que o rapaz só optou pelo caminho mais longo para ter a certeza de que eu o estava a seguir.

Dei-lhe algum tempo para entrar em casa e, de seguida, materializei-me atrás dele. Ainda não sabia muito bem como era capaz de o fazer, mas por vezes bastava-me pensar numa pessoa e aparecia ao lado dela numa questão de segundos.

O seu cabelo negro foi a primeira coisa que vi quando cheguei ao seu quarto, que estava forrado com posteres de bandas de rock desconhecidas. O rapaz puxou a t-shirt preta por cima da cabeça, mostrando os seus abdominais definidos, e estava prestes a tirar as calças também, até que se virou. Vi um relampejo de susto nos seus olhos verdes, sendo logo substituído por uma expressão fria e imparcial. Depois de um momento de silêncio entre nós, a boca dele abre-se e ele pergunta, num tom desinteressado:

- Estás pronta?

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