Capítulo II

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Junto as sobrancelhas, em confusão, e tudo o que consigo fazer é grunhir desajeitadamente uma interrogação. Com um suspiro, ele explica:

- Para a Luz. Tens de atravessá-la.

- Que luz? - pergunto, olhando em volta. A luz do candeeiro estava acesa, mas não via como poderia atravessá-la.

Ele abana a cabeça de um lado para o outro, com uma sombra de um sorriso a dançar nos seus lábios, e diz:

- Não é uma luz qualquer, é A Luz. Com letra maiúscula. Aquela por onde os espíritos passam e vão para o Céu, ou o Inferno, ou alguma coisa assim. Tu és um espírito, logo, vais para lá. Tens de ir.

Dou um passo atrás, com medo.

- Mas... Eu...

- Tens de ir. - repete ele rudemente. A falta de simpatia dele começava a irritar-me. O que acontecera àquela luz que irradiava paz?

- Porquê? - questiono, levantando uma sobrancelha.

- Porque é assim que é suposto. - responde, levantando as sobrancelhas também. A sua presunção conseguia ser vista a quilómetros de distância. - Eu sou a pessoa que faz com que os espíritos vão para A Luz, porque a Terra não é o sítio deles.

- E se eu me recusar a sair da Terra?

- O que... - ele para a meio da frase e suspira profundamente. - Porquê que te haverias de recusar?

Em resposta, só reviro os olhos e cruzo os braços. Dois podiam jogar aquele jogo.

- Não vais para lá? - diz ele finalmente. - Lá tens paz, pelo que sei.

- Não enquanto não me explicares porquê.

Apertando a cana do nariz e baixando a cabeça, ele permaneceu assim por algum tempo. Conseguia ver o seu peito a subir e a descer, agora mais calmamente.

- Olha, eu acho que nós começámos mal. Já fiz isto tantas vezes... Normalmente tento não me envolver muito com os espíritos para ser mais fácil de me despedir deles. - conta ele. Já conseguia ver mais tranquilidade no seu olhar. - Desculpa. Eu sou o Brad.

- Evelyn. - digo com um aceno de cabeça. Percebia o porquê da atitude dele. Só precisava de me levar para a Luz, sem se apegar a mim. - Agora fazes favor de me explicar o quê que está a acontecer?

Com um suspiro, ele começa:

- Portanto, tu morreste, e, como todas as pessoas que morrem, és um espírito agora. - explicou. - Supostamente tens de ir para A Luz. Porquê, eu não sei, mas é isto que eu faço. Eu encaminho os espíritos para lá e a última coisa que sei deles é a cara de felicidade antes de lá entrar e depois, puff, eles desaparecem. Não te posso dizer se é um sítio bom ou mau, mas não é como se houvessem reclamações.

- Então mas como é que é suposto eu entrar nessa Luz se eu nem a vejo? - interrompo-o.

- Já ia chegar aí. Alguns espíritos, fantasmas, espetros, como queiras, vêem logo a Luz e desaparecem antes de terem de falar com alguém como eu, mas, na maioria dos casos, a pessoa não resolveu alguma coisa antes de morrer, seja porque se esqueceu de dar comida ao gato ou por coisas mais graves. Nesses casos, o assunto tem de ser resolvido e, só depois é que a pessoa está em paz consigo mesma e pode ir para lá.

- Então eu tenho um assunto por resolver, é isso?

- Sim, é a única razão para a qual tu ainda não estás a ver a Luz... - começou Brad. - Mas vejo pela tua cara que não fazes ideia do quê que tens de fazer.

- Acho que acertaste. - concluo. Um silêncio desconfortável instala-se entre nós.

Num momento de impulsividade, o meu olhar desloca-se para o seu tronco, que continuava exposto. Pela primeira vez na minha vida, tinha o rapaz despido à minha frente. Quase.

Quando ele se apercebe do que se passa, levanta as sobrancelhas com um meio sorriso, enquanto olhava para mim. Deixo soltar uma risada nervosa, baixinho. Por fim, ele pega na t-shirt que tinha atirado para o chão e veste-a rapidamente, ainda a olhar para mim, um brilho de perversão na sua expressão.

- Bradley Richard Hale, chega imediatamente aqui! - ouve-se ao longe, provavelmente da cozinha. A cara de Brad passa de garanhão sedutor para criança assustada numa questão de segundos. As suas bochechas tomam uma coloração de vermelho vívido, perante aquela situação. Precisei de tapar a boca com a mão para não rir. O Brad, aquele rapaz tão adulto e sedutor, estava prestes a levar uma descompostura da mãe.

Por respeito, desmaterializei-me, tornando-me apenas uma partícula de ar, um átomo, um eletrão de entre todos os outros milhares de milhão que constituíam o mundo. Agora estava em todo o lado, mas em lado nenhum. Conseguia pressentir o nascimento de uma criança em África ou a morte de um idoso na América do Sul. Sabia de tudo o que acontecia, mas não fazia parte de situação nenhuma. Era avassalador. Saber exatamente quem morria, quem nascia, quem estava doente, quem ia morrer. Sofrer com a rapariga que chora sozinha no seu quarto e festejar com o rapaz que passou de ano. Tudo ao mesmo tempo. Tudo na mesma fração de segundo.

Sentia-me desamparada por já não fazer parte do mundo, mas, ao mesmo tempo, feliz por já não tomar parte daquele espetáculo sádico que a vida se havia tornado. Não sabia o que sentir. Naquele momento em que os meus pensamentos não paravam, dei por mim a assentar a mente no meu pai. Ele havia morrido há sensivelmente um ano. Teria tido a chance de conhecer Brad? Ou será que já tinha atravessado a Luz? Se sim, será que estava à minha espera? O pensamento de ver o meu pai outra vez fez-me querer descobrir o que estava do outro lado da Luz mais do que nunca.

Foi aí que aconteceu. Foi apenas por um secundo, talvez menos. Foi ali, em lado nenhum, quando eu não era nada, que a vi. A Luz. Era brilhante e aconchegadora. Queria aproximar-me, mas não consegui. Apesar de bastante luminosa, conseguia ver para além dela, e captei um vislumbre do meu pai. Foi apenas por breves momentos, pois logo depois ele desapareceu de novo, mas deu-me coragem. Ele estava à minha espera do outro lado e, não importa o quê que eu tenha de fazer, eu vou descobrir o que me está a impedir de entrar na Luz, e vou atravessá-la.

Pelo meu pai. Pela minha irmã. 

Por mim.

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